segunda-feira, 15 de julho de 2013

Memória Rota

Memória Rota - Márcio Barker
Surgiu do nada. De repente, de uma hora para a outra, de trás de uma prateleira de supermercado. E veio firme em minha direção.
Braços abertos, sorriso de orelha a orelha, olhos esfuziantes. Aquele abraço. “plá-plá-plá”
No meu ouvido esquerdo escuto:
“Mas por onde tem andando? Onde se enfiou? Nunca mais soube de você. Que é isso, seu sumido?”
Terminado o abraço, olhei rápido para o rosto, para saber, afinal, quem era o efusivo amigo.
Ninguém. Rigorosamente ninguém de quem me recordava.
Bem certamente um engano. Não tive tempo de esboçar uma palavra. E foi dizendo:
“E daí, grande Márcio, como está? Puxa vida, nunca mais soube de você. Continua lá na ‘Cultura? Você já está lá há décadas, não?”
Um frio corria pelas pernas, e os pés deram sinais evidentes que iriam falhar.
Mas, cacete!!! Quem era aquele cara?
E continuou.
“E aquele seu fuscão, cor de papagaio, ainda está com você? Eu lembro, o nome daquela cor no certificado é “verde hippie. Belo carro!!!”
E eu, na mesma. Quem era aquele sujeito??? Aquele nariz em formato de saxofone, em ré, a semi-careca, e os olhos “cor-de-burro-quando-foge”, como dizia vovó, não me avivavam a memória.
Irritado ia perguntar finalmente que era aquele sujeito. Não tive tempo.
“E a dona Júlia, como tem passado? Recuperou-se bem da cirurgia cardíaca?”
Mas de qual delas? Pensei. Pois foram algumas.
“E aquele seu belíssimo gato? AH!AH!AH! Que safado”
Em casa são três os gatos...todos safados.
Entre o pânico, ódio e surpresa, eu tentava escarafunchar na cara daquele sujeito, para saber de quem se tratava.
Bem, a vestimenta já dizia alguma coisa: Paletó marrom, calça cinza (sem vinco e com botões na vista) camisa branca, gravata azul claro (do tipo “azul calcinha”), sapato marrom e meias brancas.
Não sei por qual razão mas penso que essas é a vestimenta de um chato clássico...será? Perdoem-me se estiver enganado. Posso estar comentendo uma discriminação.
Ah, sim. Bigodinho e esmalte incolor nas unhas da mão (não vi as dos pés).
Desodorante forte e enjoativo somando-se a isso, a loção pós-barba, de matar.
Fiquei preocupado e muito irritado comigo mesmo. Que cretino sou eu. Peguei-me no pulo. Julgando os outros pelas aparências, coisa que sempre condenei.
Tá vendo, sou um réles mortal como tantos por aí.
Mas a novela continuava. Imaginem a minha situação, o cara devia saber até o número de minha identidade.
Seria um agente secreto? Alguém ligado a serviços de informações e contra informações. Ou seria alguém de algum serviço de cobrança? Ou um polícia secreta que iria entregar-me uma intimação? Talvez alguém do serviço secreto, de alguma potência estrangeira, apenas checando alguns dados, para seqüestrar a pessoa correta.
E continuou
“Você sempre comprou nesse supermercado, não é? Sempre encontro você por aqui. E ainda tem o cartão do Banco tal? Me lembro que você nunca foi fãn de cartões. Faz bem, como você sabe, eu também não gosto. Aliás me lembro muito bem daquela história que você me contou quando clonaram o seu cartão. Puxa vida. Na época foram uns quatro mil e quinhentos!!! Que absurdo. Mas você teve sorte que o Banco reembolsou tudo”.
Olhos estalados, boca entre aberta: Meu Deus! É mesmo, eu nem me lembrava mais dessa história.
Coração no mínimo a cento e cinqüenta. A pressão deveria estar na casa dos trinta e cinco por vinte e oito. E eu, simplesmente não-sabia-quem-era-aquele-sujeito!!!
E agora. Que pergunta eu faço a ele, para não parecer mal educado.
Minha saída: perguntas genéricas.
“E a mulher, como vai?”
E chutei: “Eu a via na última vez que nos vimos aqui.”
E responde com certo pasmo:
“A Cidinha?”
“Sim, a Cidinha.”
“Pensei que tivesse me perguntado pela Célia”.
“Célia”. Mas quem é essa tal de “Célia”? À propósito, também não lembrava de nenhuma “Cidinha”. A coisa estava feia.
E continuou:
“Depois daquele dia nos encontramos aqui, nos vimos novamente e contei que havia me separado da Cidinha e estava com a Célia. Até mostrei uma foto dela!”
E continua.
“Convido você a tomar um capuchino, pois bem sei que gosta muito. Aliás, você sempre toma capuchino com licor de amêndoas. Sim, bom demais”
Tive ímpetos de sair correndo, mas não deu. Foi o pior capuchino com licor de amêndoas que eu tomei.
Continuou falando sem parar. Perguntou pelos meus pais e irmãos (pelo nome de cada um deles). Relembrou das casas onde morei, lembrou até de algumas ex-namoradas minhas.
“Puxa, e a Marlene, era bem bonita...e se me permite muito gostosa...ao menos até onde a vista alcança...AH!AH!AH!AH!” Me desculpe, veja como um elogio”
Quanto a mim só sobrou a oportunidade de exercer minha parca imaginação, com perguntas amplas, vagas e genéricas que davam margem a diferentes resposta. Claro que algumas vezes tive de escutar:
“Mas, Márcio. Você sempre foi muito bom em detalhes. De sua memória não foge nada. Como pode ter esquecido disso, e daquilo...”
E sei lá mais do quê.
Finalmente tive que alegar algo drástico, para poder fugir: ameaça de desinteria. E ele.
“É o seu eterno problema intestinal, não é. Não tem nada, mas quase morre de tanto comer doce. Depois ficava tomando chá de erva cidreira que sua mãe fazia. Lembra? Sua mãe, a dona Diná sempre falava. ‘Não coma muito doce e nem e jejum’. Nunca esqueci. Morreu não é? Foi em dois mil e um. Tadinha”.
Um sorriso amarelo concordando com tudo. Suor escorrendo. Um novo longo abraço, do tipo quebra costela “plá-plá-plá”. E escuto no ouvido direito:
“Telefono um dia desses para recordarmos os bons tempos”.
Virou as costas e perdeu-se no imenso supermercado.
Na semana seguinte, por via das dúvidas, mandei trocar o número do meu telefone.
Nunca soube quem era aquele fantasma...

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Lá atrás já não existe mais

Lá atrás já não existe mais - Márcio Barker

Novamente aí está você. 
Já o vi tantas outras vezes, não é? 
Sim, já vi!!! Já nos encontramos aqui e ali. Não tem jeito, por que será?
Novamente você está no meio de meu caminho. 
Novamente eu me detenho diante de você. 
Nos olhamos.
Eu vejo seus olhos nos meus, você mesmo quieto é pavoroso. 
Você me desafia, como tantas outras vezes já desafiou. 
Você parece se preparar para o bote maior, mortal, definitivo. E eu, novamente tenho que imaginar como enfrentar você.
Olho de um lado. Tudo horrível. Horripilamentemente sem graça, sem cor, sem som, sem cheiro.
Olho de outro. Tudo sem cheiro, sem som, sem graça horripilantemente sem graça. 
É o cinza da indiferença.
É o negro da desesperança que ameaça levar-me com ela.
É o imenso vácuo da mesmice. A mesmice de todas as manhãs.
A mesmice de todo anoitecer.
A mesmice do despertar ao anoitecer.
Se olho para trás...de que adianta? De nada, pois lá atrás já não existe mais. 
Lá atrás é o refúgio da velhice, da covardia, do medo, da imaginação parca e porca.
Dos lados tudo é escuro.
E, lá atrás já não existe mais.
O que sobra? Sobra apenas uma única opção: adiante!!!
Mas adiante está você, com suas garras impiedosas. Já provei dessas suas garras.
Adiante está você que me borrifa fogo, e me queima se dó.
Entre eu e o adiante, está sua força horrível. 
Seu bafo que carboniza. 
Seus olhos que aterrorizam. 
Já nos encontramos antes, não?
Sim eu conheço você perfeitamente.
Já pus minha cara prá você queimar.
Já fui prá cima de você pronto para que me trucide.
Já gritei com você prá cortar-me com suas garras.
É...pois é.
E você me queimou.
Você me trucidou.
Você me cortou.
Mas...
Mesmo queimado eu insisti.
Mesmo trucidado continuei vivo
Mesmo cortado juntei os pedaços.
Dos lados não sobra nada...rigorosamente nada!
E, lá atrás já não mais existe.
Única opção: Ir adiante, com ou sem você no meu caminho.
Tomo fôlego, e olho prá você.
Por que será que hoje me parece maior?
Mais poderoso?
Mais tenebroso?
Mais invencível?
E eu? Como estou para a luta?
Bem, não importa. Devo ir adiante, com ou sem você...
...mesmo que eu não tenha certeza do resultado.
Vamos lá, então...