sexta-feira, 12 de agosto de 2022

 

O Inconveniente

Márcio Barker

Entro na cozinha de casa. Lá estava minha mãe colocando as compras da feira sobre a mesa.

No meio delas, destacava-se um pacote de papel higiênico, daqueles de folha dupla, finíssimo, e que anunciava-se como ''macio''. Entretanto, o que me chamou a a atenção, foi um rolo solitário, de outra marca. Não era branco, nem de forma mais delicada, e parecia uma lixa. Era o ''Tico Tico”

Daí, o diabo manda a inevitável pergunta:

  • Ué, por que esse é diferente?

Minha mãe era uma senhora bem típica daqueles anos cinquenta. Além disso, arrogante, elitista, preconceituosa (mas também tinha sua parte boa)

Sem olhar pra mim, foi dizendo:

  • Ora. É para a Josefa

Josefa era a faxineira da casa.

Completamente estranhado, veio outra pergunta (creio que também a pedido do diabo)

  • Mesmo? Então me explique uma coisa.

Atenta ela se dignou olhar para mim

  • E o que é? Pode dizer

  • Não entendo (disse eu). Me diga quais seriam as diferenças básicas entre o seu cu, e o cu da Josefa. Se o cu da Josefa tem pregas, o seu também, se ele, via de regra, não cheira lá muito bem, o seu cu também. Não é? Então por que a diferença entre os papéis higiênicos? Se você acha que seu cu é mais delicado, do que o dela, engano seu.

Hecatombe!!! Começou a gaguejar e a tremer (suponho que ódio), mas eu conhecia bem essas reações. Levantou, e saiu sem dizer nada. E eu insisti:

  • Não vai me dar um motivo?

Nem ouviu.

Minha mãe tinha muitos problemas, um deles era se apoiar em meu pai, quando não conseguia enfrentar algum contratempo.

A noite, eu já esperava. Meu pai veio falar reservadamente comigo.

Coitado dele, o que teve que aturar ao longo da vida!!! Mas era um cara legal. Bem humorado, apesar de aparentemente sério e discreto, culto, educadíssimo, um lord, como os descendentes ingleses dele. Falava baixo, pausadamente. E começou.

  • Márcio.

  • Fala, pai, já sei, minha mãe foi falar com você. Respondi.

  • Sim. Ela me contou.

E eu

  • A história do cu?

Perdeu o rebolado. Ficou sem o que dizer por uns segundos. Se refez, e prosseguiu.

  • Não quero entrar em detalhes. Mas que falta de respeito. Por que você é assim??

Respondi.

  • Falta de respeito é ela quem tem. Que absurdo. Pergunto a você, que é um cara informado e consciente: existe alguma diferença entre os dois cus? O cu da mamãe, e o cu da Josefa? Seja sincero, não dissimule.

A essa altura meu pai estava meio azul, quem sabe angustiado, não sei se pela pergunta, ou pelos termos. Mas fiquei em dúvida. Certamente, imagino, ele deveria conhecer o cu da primeira, já o da segunda, quem sabe não. Não sei se foi isso que tirou a fala dele. E eu continuei.

  • Veja. Esse gesto aparentemente simples, carrega em si, uma discriminação. Ao supor que o cu dela (perdoe-me o cacófato) seria um cu superior, um cu à parte, um cu em outro plano, em relação ao cu da Josefa. Isso demonstrou uma total insensibilidade, inclusive com um local, que é sabido em todos, ser sensível. Você não concorda? Creio que o seu também goze de uma sensibilidade normal, como em qualquer ser humano. Afinal, cu é cu. Esse é o motivo de minha revolta.

Ele continuava preocupantemente mudo, me olhando sem piscar, ainda com o seu Fulgor Ovais entre os dedos da mão esquerda. Era o cigarro que ele fumava. Respirou, e recobrou a razão, e foi dizendo.

  • Eu não sei de onde, como ou porque você é tão mal educado. Ninguém aqui ensinou má educação a você.

O que era verdade, confesso. E ele continuou.

  • Isso não são modos de falar. Que coisa horrível, faça-me o favor. Absurdo.

Interrompi.

  • Me perdoe, mas absurdo é tratar as pessoas como se fossem inferiores.

E ele prosseguiu.

-Usasse palavras, mais adequadas, mais educadas, sem nominar o objeto em questão.

Divergi.

  • Você queria que falasse o que? Que o ânus da mamãe é igual ao ânus das Josefa? Que inexiste diferença entre ambos fiofós? Ânus, fiofó, reto, ou cu, da na mesma. Cu, inclusive é uma palavra mais objetiva, clara, evidente, vibrante. É exatamente o mesmo detalhe do corpo humano, ou seja, um anel, corrugado, geralmente fedorento, dependendo do trato que se dê que, e tem função vital, inclusive do lado recreativo, dependendo da filosofia de cada um.  Ânus, reto, fiofó ou cu, é tudo cu. E cu é cu.

Virou as costas abalado. E foi embora.

E eu tenho certeza que foi a sua boa educação,  que o impediu de mandar-me tomar no cu.