segunda-feira, 22 de abril de 2013

Afinal, quem é você?

Afinal, quem é você? - Márcio Barker
Caminhando no meio da sujeira da calçada, me deslumbro com a vitrine dos deuses.
Vejo as lágrimas, por trás das mãos pedintes entendidas na janela esquerda do carro...mais adiante a mulher linda, escultural, distraída, passa esbanjando charme.
Continuo, e quase caio no buraco transformado em poça d’água pela chuva. Na água podre está o brilho intenso do neon que anuncia a gastronomia única.
A melodia suave, ao vivo, romântica, e que me faz sonhar, duela com a sirene aflita que corre para socorrer o corpo já quase sem vida.
Adiante o casarão consumido, carcomido, semi-destruído pelo tempo, pelo desgaste e pouco caso, ainda consegue orgulhosamente revelar o que foi...e o que ainda quer insistir em ser.
O carrão do grã-fino e o carroceiro aguardam no mesmo sinal verde. O mesmo sinaleiro onde dançam miseráveis acrobatas a procura do tilintar e brilhos das poucas moedas. No mesmo sinaleiro que se pode, inesperadamente, trocar a vida, por um celular.
O Sinaleiro que abre, e anuncia um caminho rumo a tantas surpresas que fazem o coração disparar. Surpresas de uma cidade ímpar...surpreendente, assustadora, por vezes cativante...e mesmo aterradora.
Está vendo aquela esquina? O que tem por atrás? Você poderia dizer com certeza? Não, pois pode haver de tudo.
Na outra esquina, o boteco feio, sujo, velho, mas capaz de pratos de dar água na boca.
No mesmo boteco ou padaria, onde no lusco-fusco do entardecer e no alvoroço, as almas se regeneram, entre copos de cervejas, sanduíches, pizzas e salgadinhos únicos.
A bela avenida de prédios magníficos, onde durante o dia desfila a finesse. A bela avenida de prédios magníficos, onde a noite trafegam fantasmas.
No fulgurante edifício, todinho de vidro fumê, reflete o imponente jato, rumo ao infinito. Também reflete o cachorrinho fuçando o lixo, em busca da sobrevivência.
Diante de mim passa outra bela mulher. Mas passaram também policiais de arma em punho.
Quando anoitece, na pista de cá da avenida, apenas luzes brancas. E, no lado de lá, apenas as luzes vermelhas. Cada vez mais luzes brancas, cada vez mais luzes vermelhas. De onde estarão vindo? Para onde irão?
Dentro do carro magnífico, o camarada escuta uma doce música, com os vidros fechados. Do lado de fora o caos que ele busca fugir...e que enfrenta todo santo dia.
Diante do prato delicioso, vejo do outro lado da mesa, um sorriso feminino encantador. Um pouco mais além, do lado de fora, um par de olhos angustiado.
Eu olho para a megalópole enlouquecida onde tem de tudo...menos paz. É a megalópole onde nasci e sempre vivi. Não sei se detesto. Não sei se gosto. Não sei. Mas devo admitir que foi ela quem me embalou. Ela que me levou pelas mãos. E é a ela a quem devo o que sou...seja pouco...seja muito...seja mais ou menos.
Se eu a suportei. Ela também me suportou. Estamos empatados. Eu e minha cidade: São Paulo.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Um amigo nas sombras

Um amigo nas sombras - Márcio Barker
Você passa por mim, e faz que não me vê.
E daí? Tudo bem. Eu também nem vejo você... Mas com o canto dos olhos acompanho você passando.
Você diz que me despreza. Ora essa, eu também desprezo você. Estamos empatados...mas no fundo torço por você.
Você já me disse que sou um “merda”...e você? Por acaso cheira a que? Mas tudo bem, sei que um dia cheirará bem.
Você já falou que me odeia. Não se preocupe, é recíproco... mas nem tanto.
Você diz que eu não presto. É verdade. Também acho isso de você...mas sei que não é verdade.
Sempre que pode, diz que tem motivos para me ridicularizar. Ora essa! E qual é a sua vantagem? Eu também tenho bons motivos para rir de você...mas não gostaria de fazê-lo.
Bem sei que minha presença incomoda você. Não é mesmo? Pois é, a sua também me incomoda...mas lembro de você na distância.
Para você eu sou invisível. Que engraçado, a recíproca é verdadeira... mas sempre me vejo por perto de você.
Você não gosta de mim. Diz que dei motivos para isso. Pois é, nunca me esforcei... mas me esforço em minha torcida para você.
Você nem olha para mim. Nem eu para você...quem sabe por isso vivemos nos trombando por aí.
Você tem raiva de mim. No duro? Que pena. Não estou nem aí, pois também tenho raiva de você...mas se você escorregar, sei que evitarei seu tombo.
Você me xinga e grita comigo. Eu replico em dobro... mesmo que seja só da boca prá fora.
Sei que um dia, no meio das sombras verei você no pódio. Em silencio vou aplaudir... e sei que, ao menos em algumas coisas, você irá concordar comigo...não importa quanto tempo passe.
Nesse dia, seja lá onde eu estiver, ficarei feliz, pois sei que entre trancos e barrancos, em alguma coisa, eu ajudei você

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Batalha no elevador

Batalha no elevador - Màrcio Barker

Homero. Faz tempo que dele, não sei nada. Por onde andara? Ex-colega do trabalho, que virou amigo. Bom sujeito, prestativo, competente, respeitava todo mundo, bom humor, enfim, um cara acima da média.
Mas, Homero tinha um problema. E daí, que não tem? Era de certa forma, um problemão: gases. Aliás, do tipo inevitáveis. Até ganhou um título: “Rei do Metano”. Quanta maldade.
Tal fatalidade rendia situações constrangedoras. Eram rodas de amigo que se desfaziam, ou durante o almoço, gente que se levantava às pressas, sem ter terminado a refeição, olhares furiosos de reprovação, etc & tal. E tinham aqueles engraçadinhos, que pediam licença, e se afastavam para acender um cigarro, alegando risco de explosão.
Eu tentava ser compreensivo, mas tinha sempre à mão uma providencial caixa de fósforos. Aliás, ótima solução para casos como esse.
“Por que não vai ao médico?” Disse que não tinha jeito. Nem os tais adsorventes de gases resolviam.
Recordo da última desventura do pobre Homero. “Última” que eu saiba.
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A porta do elevador se abre. Homero entra apressadamente, e suspira feliz por ser o único. Engano. Quase se fechando, as portas voltam a abrir. Entram mais cinco ou seis.
Início da angústia.
A tarefa seria árdua, pois dos cinqüenta andares do prédio, parece que Homero iria até o quadragésimo segundo...
O elevador parte, tranqüilo, silencioso, macio. Quem sabe características nada desejáveis para o nosso pobre personagem. Ele se conhecia...como conhecia os riscos.
Ao contrário de ir direto até o vigésimo, por exemplo, devido a manutenção de outro elevador, aquele fazia suas viagens ao estilo “piga-pinga”. “Quinto”, “sétimo”, “décimo primeiro”, e assim por diante. Às vezes, o sádico do elevador emendava sete ou oito andares em paradas seguidas. Puxa! É duro só de imaginar.
Em meio a gotas de suor (do tipo frio, típico de casos como esse), Homero divisava seus companheiros de viagem. Altos executivos, extraordinariamente engomados, barba impecável, bem escanhoada, gravata quem sabe italiana. Os sapatos de cromo alemão, terno de casimira inglesa, enfim, aquele padrão que já sabemos. Ao lado, levavam a tira-colo moçoilas bem mais jovens, todas emperiquitadas, quem sabe secretárias...ou quem sabe sei-lá-o-quê, não vem ao caso.
Ah, sim. Não faltavam aquelas senhoras impecavelmente trajadas (não digo “vestidas”, eram “trajadas” mesmo), maquiadas, unhas feitas, penteados acrobáticos, broches, pulseiras, anéis, correntes etc & tal, verdadeiras árvores de Natal. Algumas já meio desgastadas, outras até que desejáveis (confesso que adoro uma “coroa”). Algumas com olhar severo, do tipo “deixa que eu chuto”, ou com aquele o olhar com a cor do desprezo pelo mundo. Ou ainda aquelas ditas, ou de fato carolas com olhares do tipo “doce-aguado”.
Mas Homero não estava interessando nem nas gostosas. O seu único fim, seu desejo máximo, seu ardor extremo, era chegar ao quadragésimo segundo maldito andar do cacete!!! Só isso, nada mais. Não era pedir muito, que custava aquele puto daquele cretino, daquela merda de elevador do cassete, chegar lá! Filha da...Antes de terminar, outra parada: “décimo sexto”.
O olhar de um náufrago dentro daquela maldita caixa de aço escovado e luzes fosforescentes, fitava os desgraçados dos malditos numerozinhos iluminados, que marcavam cada desgraçado andar pelo qual, a merda daquele elevador passava.
Coitado, desculpem tanta coisa chula, mas não dá para descreve de fato, a odisséia de Homero.
Ao chegar ao trigésimo, Homero era uma pálida e surrada sombra humana. Um farrapo. A pressão arterial deveria estar nas alturas. Aliás, a mistura de tantos odores de diferentes loções (de barba ou corporal), perfumes, fora os desodorantes (inclusive os do tipo “íntimo”), contribuíam, em muito, para a desestabilização física e emocional de meu amigo. Estava já, perdendo o autocontrole, o autoconhecimento, a bravura, em lidar contra o poderoso inimigo que guardava, e se avolumava dentro de si.
Por outro lado não poderia deixar de pensar em outra coisa: abençoado esfíncter!!! Sim! A ele rendia todos os seus agradecimentos, ao menos até aquele momento, por sua conduta impecável. Suplicava que permanecesse firme, solidário, convicto em sua tarefa, a qual lhe foi atribuída.
Mas o duro é que ainda...estávamos onde? Ah, sim no trigésimo. Faltavam, pois, pelas suas contas, mais doze andares...naquele elevador de andar macio, tranqüilo e silencioso.
O desespero e o destempero começam a tomar conta de Homero, normalmente um homem cordial. Próximo a porta, ele estava sujeito a todo o tipo de empurrões, seja por cotovelos, ombros e até joelhos. Passou então, a revidar, situação que provocou alguns olhares irritados, os quais sequer deu conta.
A situação era desesperante. Um rompimento, um escorregão, um desequilíbrio, e uma explosão estava por vir.
O pior, é que por momentos a pressão era mortal, insuportável, praticamente impossível de resistir, parecia que a batalha estava perdida. Porém o esfíncter estava lá, garboso, heróico, imperturbável, batalhador. Sim! Como o último homem, da última trincheira, ele não abandava o posto. Lutaria até a última bala.
Mas...fraquejou e titubeou no trigésimo nono...
Dias depois li uma notinha, num jornal. Dizia assim: “Terror, tumulto, desespero e desordem no trigésimo nono andar, do edifício tal.” E completava: “O elevador do dito edifício, repleto de pessoas, foi abalado....blá, blá, blá”. Vou poupá-los, pois a imaginação é fértil.
Nunca mais soube do meu amigo Homero. Por onde andará? Terá sobrevivido?

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Quem vai comprar?

Quem vai comprar - Márcio Barker



Olhar perdido. Cabeça longe. Daí eu pensava nos anos de dureza e desemprego. Que tristeza! E me perguntava, só por curiosidade: “Até quando?”. Puxa vida, que castigo!
Onde arrumar um trabalho? Onde arrumar grana? Tá difícil!
Nisso ocorreu uma idéia, sei lá por que:
E se eu vender algo?
Mas que tristeza chegar a esse ponto!
Mas vender o quê? O que eu teria para vender?
E se eu vendesse, por exemplo, o meu coração? Que tal?
Bem. Vamos criar um anúncio. Como seria?
Mais ou menos assim, ó:
OPORTUNIDADE
Coração – VENDO
Estou disponibilizado meu coração.
Já meio rodado, mas não cansado. Livre de álcool e nicotina, o que já é uma grande vantagem, pois nunca bebi (não por moralismo, mas por gosto), e não fumo há muuuito tempo.
Bate bem. Média entre setenta a oitenta RPMs. Dada a baixa rotação, é de se esperar que o desgaste seja pouco, o que dá a ele uma razoável expectativa.
Não é velho, no máximo antigo, pois existe uma grande diferença entre esses dois estados. Antigo, porém muito bem conservado.
Válvulas aórtica e mitral sem fuligem, lubrificadas e em bom funcionamento. Ausência do chamado “sopro”. Válvula tricúspide, idem. Portanto, nada de válvula presa.
Bom trânsito sanguíneo tanto no ventrículo esquerdo, quanto no direito.
Suporta bem sustos, stress, corridas atrás de ônibus perdidos, ausência de elevadores, não engasga em escadas.
Batimento normal, sem arritmias. Não desanda nem sai do compasso.
Resistente a taquicardias e acessos de raiva, pois raramente esteve sujeito a tal, já que é também conhecido como ‘bom coração’, tanto no sentido lato, quanto no figurado.
Ao contrário de seus congêneres em idade, não é do tipo “surrado”, ao contrário, ainda é sujeito a paixões, entusiasmos, alegrias, objetivos, esperanças e bom humor, provocando em si mesmo, um funcionamento enérgico, compassado e firme.
De um modo geral livre de frituras, hambúrgueres, carne suína e demais maus hábitos alimentares, está razoavelmente livre de placas, entupimentos ou mesmo semi-entupimentos, o que favorece um funcionamento livre de entraves. Fornecendo, por conseguinte, grande fôlego, circulação à vontade e oxigenação idem, de um modo geral, inclusive nas extremidades, o que é um fator de grande relevância, em especial no espécime humano do sexo masculino.
Apesar da quilometragem, ainda insiste em motivar-se e sabe bem o que é uma emoção. Porém, prático, sabe ser igualmente frio, quando absolutamente necessário à sua própria sobrevivência.
Não desanima, não rateia, não derrapa, não queima óleo, não falha, livre de angina, resistente a decepções.
Exemplar único. Oportunidade igualmente única. Não perca.
Vale à pena conferir.

Aceito ofertas.”
E daí, você compraria?