quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Chatice

 
Chatice - Márcio Barker

 Outro dia recebi um convite, aliás, muito especial. Especialíssimo, pois era para ir ao encontro anual dos antigos camaradas, de outros tempos.
Fazia tempo que não comparecia a esses encontros. Fiquei animadérrimo.
Daí vem aquela curiosidade: como estará o fulano, sempre falante, “garganta”, metido a comedor? O beltrano, piadista, daqueles que conta os maiores absurdos com expressão de seriedade absoluta? E a siclana? Nossa como estará? Gostosíssima, que coxas!!! Seios deslumbrantes!!! Às vezes eu ia ao cinema com ela...saia de lá sem saber sequer o título do filme...
Ah, sim. Tinham os eternos atletas no futebol, vôlei, basquete, e por aí vai.
Bem, depois de anos já não eram mais os mesmo. Normal.
Fui ao encontro numa pizzaria.
Logo de cara foi difícil encontrar a mesa onde estavam só depois que me chamaram. Estavam bem debaixo do meu nariz. (mudaram tanto, ou eu que já não enxergava bem?)
Fiquei preocupado. Deveria estar como eles. Dei uma olhada de relance num espelho do salão. Não estava tão mal assim. Claro, uma análise suspeita.
Cumprimentos, abraços, beijos, piadas, afagos do tipo:
"não mudou nada"
Ou,
como você está bem” etc e tal. Tudo “média”, pura diplomacia.
Sento.
E logo vou atacando o antepasto formado por torradas ao alho e óleo, azeitonas verdes (e pretas), bolinhas de manteiga, cebola no óleo e vinagre, além do queijo provolone à milanesa.
E, ao lado a conversa rolava animada:
E o triglicéris, como anda?”
Ou ainda:
O médico me receitou tal coisa”.
É mesmo? E de quantos miligramas?
Cinquenta. E pra você?”
Cem, mas duas vezes ao dia”.
Procurei fazer ouvidos de mercador, e concentrar no maravilhoso couvert.
Porém era inevitável, pois daí, do outro canto da mesa, alguém foi dizendo que andava urinando mal, por causa de uma obstrução no canal. E que, imagine, teve o pobre, passar por uma sessão de não-sei-o-quê, para desentupir.
Puxa, e era justamente o Aurélio, um verdadeiro (ou se dizia) atleta sexual. Logo ele, entupido.
Bem, coluna, então era uma coisa momentosa, assim como a pressão alta.
Enquanto isso, eu prosseguia atento ao couvert, agora degustando, generosas fatias de pão italiano, com um molho à base de alho torrado, azeite de oliva orégano e algumas pitadas de queijo parmesão ralado. Imbatível.
Mas a coisa continuava à minha volta:
Taquicardia, descompassos, insônia, calo (com e sem olho de peixe), tosse de cachorro, rinite, visão embaçada, formigamentos nas extremidades, câimbras, pesadelos, insatisfação, ejaculação retardada, hemorroidas, amolecimento prematuro, colesterol alto (do bom e do mal), açúcares, insuficiências, pedras (tanto nos rins, quanto na vesícula), má irrigação sanguínea periférica, disfunções várias dos tipos intestinais, circulatórias, inclusive erétil, desequilíbrios (físicos e mentais) etc e tal. Não sei, mas tive até a impressão, de ter escutado alguém falando em prótese peniana.
A essa altura, eu já comia a segunda fatia de uma bela pizza de aliche (que eu amo), junto com outra de mussarela, ambas regadas a um incrível azeite de oliva italiano, enquanto refrescava-me com um fantástico guaraná. Aliás, é bom que se diga, que somente eu quem se deu conta da chegada das pizzas.
O Neves era um dos mais palestrantes mais contundentes. Além de desfilar seus inúmeros problemas (de saúde e com o fisco), também passou a palestrar sobre a morte de seus pais fartando-se em detalhes. Coisa, aliás, que eu já sabia de cor e salteado. Claro, não deixou de palestrar sobre sua hemorroida, pré catarata, vesícula entupida, colesterol batendo lá em cima, e manchas na visão, pequenos tremores e visão semi-turva. À boca pequena, maldosa, aliás, dizia também estar sofrendo de ereção hesitante.
Que coisa!!!
Que teria passado com aqueles heróis e semideuses?
Parece que foi há pouco que a conversa versava sobre mulherada. Convenhamos, um assunto bem mais saudável, excitante e, visualmente lindo.
E era aquela autoafirmação.
Todos, rigorosamente todos se diziam imbatíveis na arte da sedução. Hipnóticos. Travava-se uma verdadeira guerra de quem era o melhor.
Um dizia que tinha saído com uma princesa, e teria “dado” umas três (às vezes até, sem tirar). O outro tinha "garfado" uma loirona daquelas, (eu sempre preferi as morenas. Imbatíveis, em minha opinião, é claro). E a dita loirona seria “uma verdadeira égua”, na qual ele teria “cavalgado” por uma noite inteira.
Ah! Sim, e havia aquele cuja agenda lotatérrima de beldades (da loira a morena, da mulata a ruiva) que chegou a ter problemas de horários (horários encavalados).
Eram bravatas após bravatas. E, naquele tempo, eu também preferia só escutar...era divertido.
Ah, sim! Tinha mais um coisa que marcou aquela doce época: a milagrosa Bezentacil, de um milhão e quatrocentas mil miligramas (diziam que doía fundo na alma...e na bunda), sim, pois foram muitas as gonorréias tratadas à base da lendária Benzentacil. Eu nunca tomei. Tinha mais critério...e menos bazófia.
Bem, agora enquanto eu me regalava com duas fantásticas fatias de pizza de gorgonzola e outra de presunto Parma, a conversa continuava.
Agora o assunto derivou para um leque impressionante de calmantes, antidepressivos, soníferos, antidistônicos, energizantes, complexos vitamínicos passando por modernas técnicas cirúrgicas, do tipo “explosão” de pedra nos rins, raio lesar, etc.
Impressionava a desenvoltura como palestravam sobre tais temas, Pareciam dominar a fundo, o assunto. Entenderiam eles também de supositórios? (já estava meio irritado)
Seriam os mesmos que eu escutei discutirem sobre as idas e vindas da política nacional e internacional? Normalmente eram revolucionários que queriam mudar a ordem mundial. Mas que tinham predileções, digamos "pequeno burguesas", pois se falava também, muito da “performance” do carro de cada um (carros naturalmente presenteados pelos pais).
Um deles tinha o celebérrimo Opala seis cilindros, envenenado, o outro o potente Camaro V8, ou o Corcel assim e assado.
Faziam de zero a cem e dois segundos e meio. O outro tinha um Dodge Charger turbinado. Tinha também aquele outro com um Maveric V8. E, não faltava o sujeito que possuía um fuscão, 1500 cc, “preparado”.
Por um instante meu garfo fica entre o prato e minha voraz boca. Foi quando indaguei: onde foram para aquelas belas máquinas...e que fim tiveram seus intrépidos motoristas?
AH, sim. Estavam ali mesmo, disfarçados e escondidos em meio a cabelos brancos, reluzentes carecas, rugas, dores, desconfortos vários, irritação, mau humor, reclamações. Antigos rebeldes que o tempo transformou em reacionários.
Quando terminei a minha incrível sobremesa; um magnífico bolo de chocolate, recheado com mouses e morango, acompanhado por belo creme de papaia ao cassis, chegou a hora da despedida.
Os abraços e os votos de sempre, além do clássico "vamos nos ver". Terminado, eu sumi rápido.
Triste.
Bem, envelhecer qualquer um envelhece...mas tem gente que exagera.
Não dá para curtir as mazelas da velhice, como as aventuras da juventude.
Perdoe-me, você acha que eu estou errado???

sábado, 2 de novembro de 2013

Lentilha


Lentilha - Márcio Barker
Mesa farta. Fome idem
Camarão com alho e limão, frito no azeite de oliva.
Arroz, tinha algumas variações. Carreteiro, com lingüiça; simples; com cebola; e azeitona preta.
Costela assada no forno com agrião. No acompanhamento algo eclético: batatas à dorê, quiabo, polenta frita e polenta ao molho de tomate, farofa, macarrão, pasteizinhos de carne e queijo
Frango assado recheado com farofa refogada na manteiga, com alho frito, azeitonas verdes, salsinha, cebolinha, pimenta do reino e ovos fritos
Batatas: palha, frita, (já contabilizando as a dorê)
Um leque de maioneses: de azeitona verde; preta; alho, simples; e ervas finas.
Tutu de feijão à paulista; à mineira: e à carioca.
Feijão fradinho com linguiça defumada.
Uma pratada de bacon frito e outra de torresmo gordo.
Também rocambole de carne assada, recheada com legumes.
De sobremesa, bananas cozidas ao açúcar mascavo, flambadas com licor de cerejas, derramadas sobre taças de sorvete de creme.
Não faltaram os lendários pudins de pão e de leite condensado.
Além de doce de abóbora, doce de leite, fios de ovos na cereja licorosa, doce mamão ralado.
Sento-me a mesa.Uma mesa perfeita .Orgulhoso (e com fome), sei que na realidade eu era responsável algumas dessas delícias.
Gentilíssima, com sorriso de orelha a orelha, coberta de boa vontade, a Julinha, minha doce esposa, se apressa em servir-me. Apesar de reconhecer sua bondade, sempre preferi eu mesmo me servir.
Claro, sei o que quero, o que não quero, a quantidade, não gosto de sobrepor alimentos, e toda uma série de esquisitices que tenho. Sou um chato.
Mas a afabilidade era de tal ordem, que cedi.
O que vai querer?” Disse ela com aquele bendito sorriso.
Respondi:
Um pouco de costela...não, não...menos por favor. Arroz...não, o simples. Polenta, por favor. Não! Não! A frita. Um pouco de farofa...”
E ela me interrompe.
Quer lentilha, também?”
Aqui cabe um parênteses. Não suporto lentilha, mas sempre que tem a maldita lentilha, ela me pergunta se quero. Mesmo diante de minha negativa, ela insiste. Querem ver?
E lá vem ela:
Lentilha. Quer também”.
Eu.
Não. Muito obrigado.”
Ela.
Um pouco de tutú?”
Eu
Não. Por favor, só o feijão”.
Ela.
E um pouco de lentilha também, né?”
Eu
Não!”
Ela
AH! Tá. pastéis?” (Adoro pastéis)
Eu
Sim. Um por favor.”
Ela
Lentilha”
Eu, já semi-espumando
Escute. Desde que nos casamos, e já fazem al-gu-mas dé-ca-das, nun-ca co-mi len-ti-lha. E toda vez que tem len-ti-lha você me oferece. Eu de-tes-to lentilha. Certo?”
E ela
Ah...tá. É mesmo. Verdade. Você não gosta de lentilha. Mas é tão gostoso. Eu,por exemplo, a-do-ro sopa de lentilha. Não quer mesmo???
Eu
Grrrrrrr”
Ela
Tá bom. O que mais? Ah, sim. O tutú a mineira.”
Eu
Não, o a paulista”
Ela
Um pedaço do peito do frango...”
Eu
Não. A sobrecoxa”
Ela
Ah, tá. E um pouco de lentilha...”
Eu
Put...perdão. Não!!! Lentilha...NÃ-O!!! Certo?”
Ela
Como você é chato, não? Estou querendo ser gentil, e fica assim...nãoé prá tanto!”
Eu
TÁ...”
Ela
“Maionese?”
Eu
“Por favor”
Ela
“A de azeitona preta?”
Eu
“Não, da verde”
Ela
“Mais alguma coisa?”
Eu
“Não. Muito obrigado!!!”
E sorrindo, com seu rosto angelical, ela dirige o prato para mim. Um belo prato escolhido à dedo, mas... Não!!! menos a maldita lentilha que ela havia colocado, bem debaixo do pastel!!!!!!
À partir daí eu soube da continuação dos fatos, por meio de testemunhos dos que estavam à mesa.
Toda a tigela de lentilha foi esfregada (com reqintes de crueldade) na cabeça da pobre Julinha.
Após o que, seu rosto foi afundado, mergulhado e esfregado no pudim (de pão, pois poupei o de leite condensado por ser o meu predileto)
Quando eu peguei o frango, para surra-la, fui contido pelos comensais, vizinhos e seguranças da rua.
Meu Deus!!! Matei a Julinha por causa da maldita lentilha.
Já dono da razão, me vejo horrorizado jogado não chão, suado, molhado, arfante, febril e tremendo. Olho a minha volta. Vejo ao meu lado, minha cama!!!
Quem bom! Quem bom! Foi só um simples pesadelo.
Em todo caso vou enfatizar a Julinha, que nunca mais me sirva lentilha!!!
Mas será que vai se lembrar...?????
Maldita lentilha!!!