Pois é... - Márcio Barker |
´Pois
é, ´seu´ Neves, infelizmente os exames dizem que a coisa não está
boa. Inclusive, acrescento grave. Indico, aconselho uma cirurgia
urgente. Me perdoe, mas devo ser isento. Chance de êxito de apenas
por volta de dez por cento. Melhor internar-se já.´
Ou
seja, chance de não
êxito era por volta de noventa por cento.
E
disse tudo isso com um sorriso. Aliás, seja lá qual for o quadro,
eles sempre têm o mesmo sorriso.
Aturdido,
Neves, o pobre Neves, internou-se. E já foram avisando: ´a
cirurgia será amanhã´.
Neves
era tido como ´probo´,
daqueles que se diziam `tementes
a Deus´. Reto, sério, honrado, fiel, sincero, honesto.
Mas
diante da iminência dos noventa por cento prevalecerem,
preocupou-se. Ainda havia tempo para algumas palavras, a algumas
pessoas. Não queria ficar mal com Deus.
Mandou
chamar o sócio, Athayde, e abriu-se:
Caro
Athayde. Não sei se ficou o se vou. Tá mais com jeito de ir, do que
ficar. Assim, chamei você aqui para demonstrar minha sinceridade.
Sabe aquelas diferenças no balancete e no estoque? Não foi erro do
contador, ou do pessoal do depósito. Falando claro: fui eu quem
embolsou. Me perdoe, não quero ir para o inferno.
Athayde
teve um acesso, quase um espasmo...mas controlou-se. Afinal o homem
estava praticamente para morrer. Virou as costas, e se foi.
Rosinha,
a melhor amiga da mulher do Neves, também foi chamada. E
escutou:
Rosinha
sou sincero com você. Sei que estou comendo você já há um bom
tempo. Mas, sinceramente, nunca tive qualquer intenção séria. Por
favor, me perdoe. Será que vou para o inferno?
Rosinha,
mais passional que o Athayde, mandou-o não só para o inferno, como
também recomendou que tomasse naquele orifício corrugado entre -
nádegas.
Neves
também se lembrou do Aroldo, velho amigo desde os tempos de
infância, do carrinho de rolema, a doce época dos sonhos juvenis no
colégio, faculdade, farras e mulherada.
Lá
estava o Aroldo condoído diante da possibilidade da perda do velho
amigo, disfarçando os olhos marejados.
E
o Neves foi dizendo:
Aroldo,
meu caro. Amigo de todas as horas. Das farras. Dos apertos que você
me tirou. Da mão estendida. Das estripulias e desordens no bairro,
no colégio, na faculdade. Meu grande amigo que sempre me criticou
pelo uso abusivo de regras. Mas tenho que provar a minha sinceridade:
justamente com você eu cometi uma exceção a uma regra. Aquela que
diz assim: mulher de amigo meu é homem.
Espantoso!
Os olhos marejados de Aroldo secaram. Os punhos se fecharam. Foi
contido por um enfermeiro. Afinal o enfermo estava quase condenado
E
os chamados continuaram.
Para
o ex colega de militância à esquerda, confessou-se agora
comprometido com o Sistema, um arrogante reacionário.
Para
os amigos de longa data a quem devia, sinceramente revelou que nunca
pretendeu pagar.
À
secretária do almoxarifado da empresa, a qual comia regularmente, revelou de modo crú, que já tinha perdido a graça. E criticando a performance sexual da moça, afirmou que ela nem sequer sabia
mexer bem.
Ao
gerente do banco confessou, com toda sinceridade que seu cadastro
omitia certos detalhes comprometedores e acrescentava outros não
muito condizentes com a verdade.
Ao
tabelião, também de modo sincero, confessou que alguns testemunhos
eram pura falsidade ideológica.
Choque
geral, é claro, mas ao menos caso ocorresse o pior, os tais noventa
por cento, ia mais ou menos limpo. Se é que existe esse tipo de mais
ou menos.
Dia
da cirurgia.
Entra
o doutor com seu sorriso. Aliás, seja lá qual for o quadro, eles
sempre têm o mesmo sorriso.
Seu
Neves, como se sente? Bem, revendo seus exames com mais acuidade,
chegamos a conclusão de que, na realidade podemos inverter as
porcentagens, o senhor até que está bem. Tranquilize-se.
E
daí, que tal?
Pois
é....