terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Miragem


Miragem - Márcio Barker  retirado de http://migre.me/nhcgZ

Sinto o olhar, mas não vejo os olhos...
De qual cor serão? Não consigo imaginar...mas já acho que são bonitos.
E a voz que escuto, mas não ouço?
Percebo cabelos que não vejo...
E o perfume que não sinto...mas está ali, em algum lugar.
Sabe? Imagino seu vulto, sua presença... mas como, se nunca vi você?
E como será você? É...que pergunta!
Será amiga? Falante? Carinhosa? Ou será calada, guardando segredos? Será severa?Será cheia de certezas duvidosas, ou será repleta de dúvidas acertadas? Será que se esconde? Será que se entrega? Será que brinca? Será? Será? Será? Nada mais, do que será?
Eu e minhas dúvidas. Mas também é compreensível.
O lusco fusco brincalhão finge dar forma ao seu rosto. Mas que coisa! Não distingo, entre o claro e o escuro.
Curioso, eu o imagino de todos os modos...penso que já vi...mas nunca vi.
E volto a perguntar: Como será?
Imagino você diante de mim falando de seus dias...pois é, acho que sei bem mais de seus dias, do que de você mesma.
Você fala, me conta coisas, e eu ainda não sei qual é o timbre de sua voz. Chato, né?
E eu me pergunto quem é você de verdade. Mas será que você é de verdade? Existe mesmo? Será que você tem sangue correndo e alma?
Mas, sei lá o que me encantou, não sei. E fico na encruzilhada.
Prá lá, pode ser que encontre o doce sabor de cores fortes, quentes apaixonadas...mas também tormentosas...terrivelmente tormentosas...daquelas que machucam...
Prá alí, o conhecido caminho das cores desbotadas, frias, desapaixonadas, mas tranquilas.
E daí, heim??? Que aposta fazer?
Não vi seu rosto tão lindo.
Só imagino uma suave voz...que nunca escutei.
E o perfume que nunca senti.
E você fica aí, nas entrelinhas, no lusco fusco, no cinza, entre o claro e o escuro, provocando minha imaginação.
E que eu faço? Dou asas a ela? Ou deixo de imaginar?

sábado, 4 de outubro de 2014

Mancha de Óleo

de boca em boca
Mancha de Óleo - Márcio Barker *imagem tiradad de http://migre.me/m70cm*
Daí o Atayde sai do banho e a tolha por azar escorrega em frente da empregada.
Para disfarçar a situação e, quem sabe com alguma esperança inconfessável lá no fundo, vai dizendo:
´Até que não engordei muito, não é, Maria?`
A pobre moça dá um sorriso amarelo, e vai saindo. Atayde não sabia onde enfiar a cara. E foi trabalhar tentando esquecer do incidente, justo com ele, um cara reto, probo, moral conservadora, discreto, sem maldade. Logo com ele.
Quando voltou para casa, um festival de trombas e olhares tortos em sua direção.
E a mulher vai dizendo: ´Com o que, heim? Quer dizer que agora anda fazendo strip pela casa? Cafajeste, não tem vergonha?´
Atayde não teve reação.
E veio mais chumbo: ´Pensou que a Maria fosse dessas, que topam qualquer parada, não é? Mas fique sabendo que ela é moça direita, viu??? ´
Um filete de suor já descia pela testa, e a pulsação estava sei lá a quanto.
Mais chumbo: ´E ela me disse que você ainda teve a pachorra de perguntar se ela achava que você ainda dava pro gasto. Que vergonha!!!´
Atayde estava incrédulo e mudo.
Mais tarde ouviu isso da filha:
´Pai, mas que vergonha. Você não tem espelho, não? Não pensou nos anos em que a mamãe está ao seu lado? ´
E foi saindo com voz embargada. Já do filho veio a ironia.
´O que, heim? Comedor é? Quem diria. ´
Arrasado, dia seguinte Atayde chega ao trabalho. E alguém diz:
´Atayde, o dr Alberto tá chamando lá na sala dele.´
Entra na sala do Dr. Alberto, que vai dizendo:
´Escute, Atayde, o nosso quadro de funcionários sempre pautou pela decência, probidade, retidão, honestidade e valores morais inabaláveis. Fiquei sabendo. Lamentável! Será que você não se enxerga? Pai de família!!! Ora faça-me o favor. Outra dessas é justa causa, entendeu?´
O queixo do pobre infeliz estava nos joelhos.
Pirou quando viu as colegas desviarem o olhar, e os colegas com aquele sorrisinho de lado. Alem de cochichos à meia boca.
Sábado. Gentarada na casa do Atayde. De repente encosta o sogro com um copo de cerveja:
´Sabe, Atayde, a sua sorte é que eu tenho oitenta e dois anos, porque senão eu iria encher essa sua cara de safado com muita porrada´.
Atayde quase infarta. E o velho continha.
Cafajeste! Onde eu estava com a cabeça de permitir que minha filha, fosse se enrabichar com você! Então quer dizer que anda comendo a empregada? Seu filha da puta.´
Das cunhadas apenas burocráticos ´olás´. Já dos cunhados, risinhos e comentários do tipo:
´Ô Atayde,seu descuidado. Comendo a empregada em casa? Com tanto lugar por aí?´
No domingo de manhã, comprando pão na padaria, o atendente vai dizendo:
´Comendo a empregada, seu Atayde? ´.
Atayde ficou se voz. E o outro ainda emenda:
´O senhor tem bom gosto. Moça bonita. Como conseguiu convencer a garota?´
Depois de um pesadelo em forma de fim de semana, o pobre infeliz volta ao trabalho.
O frentista do posto: ´Ò seu Atayde, eu soube. Na sua idade ainda dando no coro. Parabéns!´.
O garoto que vende doces no semáforo: O senhor que é o Atayde? Puxa!!!´.
Da atendente da loja de conveniências: ´Olha! O senhor toma sua linha, viu. Não vem não. Que pouca vergonha!!´.
E não ficou por aí.
Os seguranças do Shopping, os motoristas ao seu lado parados no semáforo vermelho, o açougueiro, na feira livre então era um tormento. O manobrista do restaurante, o garçon, até o chinês das pastelaria gritou lá do fundo: `Atayde! Você está de parabéns! `
E do médico teve de ouvir: ´Seu Atayde, evite estrepolias. Na sua idade...não faz bem...nem fica bem´
A ruptura, a explosão estava para acontecer.
Aconteceu quando o velho e bom Bóris, rosnou, arreganhou os dentes e mordeu o Atayde!!!
Dai atayde desanimou de vez... sumiu.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Fim da linha

Fim da linha - Márcio Barker

Irritação, mau humor, impaciência. Falta de ânimo. Nasceu uma formiga. Hoje um docinho chega a dar dor de consciência. Merda!!! Pregado na poltrona, luta para conseguir um motivo para levantar. Ranzinza, reclama do que antes o encantava. Blasfema contra antigos sonhos. Manda pro inferno idéias pelas quais brigou. Se sente ridículo quando recorda do que antes foram doces lembranças. Mal diz o que antes o encantava. Xinga e ofende novidades. Odeia o sol, os horizontes. Recua diante do que está por vir. Se refugia no que já passou. E o que mais assusta, no espelho a sua frente. não é o rosto marcado. Mas no horror que está por trás dele.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Pois é...

Pois é... - Márcio Barker
´Pois é, ´seu´ Neves, infelizmente os exames dizem que a coisa não está boa. Inclusive, acrescento grave. Indico, aconselho uma cirurgia urgente. Me perdoe, mas devo ser isento. Chance de êxito de apenas por volta de dez por cento. Melhor internar-se já.´
Ou seja, chance de não êxito era por volta de noventa por cento.
E disse tudo isso com um sorriso. Aliás, seja lá qual for o quadro, eles sempre têm o mesmo sorriso.
Aturdido, Neves, o pobre Neves, internou-se. E já foram avisando: ´a cirurgia será amanhã´.
Neves era tido como ´probo´, daqueles que se diziam `tementes a Deus´. Reto, sério, honrado, fiel, sincero, honesto.
Mas diante da iminência dos noventa por cento prevalecerem, preocupou-se. Ainda havia tempo para algumas palavras, a algumas pessoas. Não queria ficar mal com Deus.
Mandou chamar o sócio, Athayde, e abriu-se:
Caro Athayde. Não sei se ficou o se vou. Tá mais com jeito de ir, do que ficar. Assim, chamei você aqui para demonstrar minha sinceridade. Sabe aquelas diferenças no balancete e no estoque? Não foi erro do contador, ou do pessoal do depósito. Falando claro: fui eu quem embolsou. Me perdoe, não quero ir para o inferno.
Athayde teve um acesso, quase um espasmo...mas controlou-se. Afinal o homem estava praticamente para morrer. Virou as costas, e se foi.
Rosinha, a melhor amiga da mulher do Neves, também foi chamada. E escutou:
Rosinha sou sincero com você. Sei que estou comendo você já há um bom tempo. Mas, sinceramente, nunca tive qualquer intenção séria. Por favor, me perdoe. Será que vou para o inferno?
Rosinha, mais passional que o Athayde, mandou-o não só para o inferno, como também recomendou que tomasse naquele orifício corrugado entre - nádegas.

Neves também se lembrou do Aroldo, velho amigo desde os tempos de infância, do carrinho de rolema, a doce época dos sonhos juvenis no colégio, faculdade, farras e mulherada.
Lá estava o Aroldo condoído diante da possibilidade da perda do velho amigo, disfarçando os olhos marejados.
E o Neves foi dizendo:
Aroldo, meu caro. Amigo de todas as horas. Das farras. Dos apertos que você me tirou. Da mão estendida. Das estripulias e desordens no bairro, no colégio, na faculdade. Meu grande amigo que sempre me criticou pelo uso abusivo de regras. Mas tenho que provar a minha sinceridade: justamente com você eu cometi uma exceção a uma regra. Aquela que diz assim: mulher de amigo meu é homem.
Espantoso! Os olhos marejados de Aroldo secaram. Os punhos se fecharam. Foi contido por um enfermeiro. Afinal o enfermo estava quase condenado
E os chamados continuaram.
Para o ex colega de militância à esquerda, confessou-se agora comprometido com o Sistema, um arrogante reacionário.
Para os amigos de longa data a quem devia, sinceramente revelou que nunca pretendeu pagar.
À secretária do almoxarifado da empresa, a qual comia regularmente, revelou de modo crú, que já tinha perdido a graça.  E criticando a performance sexual da moça, afirmou  que  ela nem sequer  sabia mexer bem.
Ao gerente do banco confessou, com toda sinceridade que seu cadastro omitia certos detalhes comprometedores e acrescentava outros não muito condizentes com a verdade.
Ao tabelião, também de modo sincero, confessou que alguns testemunhos eram pura falsidade ideológica.
Choque geral, é claro, mas ao menos caso ocorresse o pior, os tais noventa por cento, ia mais ou menos limpo. Se é que existe esse tipo de mais ou menos.
Dia da cirurgia.
Entra o doutor com seu sorriso. Aliás, seja lá qual for o quadro, eles sempre têm o mesmo sorriso.
Seu Neves, como se sente? Bem, revendo seus exames com mais acuidade, chegamos a conclusão de que, na realidade podemos inverter as porcentagens, o senhor até que está bem. Tranquilize-se.

E daí, que tal?
Pois é....

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

No Fim da fila

No fim da fila - Márcio Barker 
(imagem tirada de Hospício Literário)
 

Ainda ontem...
No fim da fila, eu espreitava as curvas que ela fazia.... e se perdia.
Nem dava prá ver onde ia dar.
Meu Deus me perdoe, mas quantas filas ainda me esperam?
Mas valentemente que estava lá,
e de lá não sairia até chegar ao seu final.
E eu pensava se um dia as filas terminariam. Se eu, pobre mortal, me livraria delas.
Eu era o último desgraçado, naquele fim de fila. Quanto tempo até chegar ao seu final?
Resmungava, amaldiçoava aquela fila, como tantas outras que já peguei. Se pudesse, mataria com requintes de crueldade, os responsáveis por tantas filas.
E, para fugir do inferno da fila, eu sonhava.
É sim. Ia longe. Lembrava de doces beijos, de palavras carinhosas. De sorrisos ingênuos.
Lembrava também das conversas bobas, jogadas fora nas rodas de tolos amigos
Das piadas tontas, da risada fácil.
Tinha que me conter, pois rindo sozinho, a fila iria achar esquisito..
Analisava e refletia os tipos daquela fila.
Mas os olhos sempre preferiam as boas bundas, das boas da fila.
Os rostos ficavam mais coloridos, pelos meus olhos brilhantes, desassossegados, curiosos, safados.
Ria de lado, do tipo que me parecia engraçado. Rugia por dentro contra o arrogante.
E voltava a ter o coração aos saltos...graças a mais uma excelente bunda, da moça ali ao lado, aliás, muito bem feita.
E entoava em pensamento, um desordeiro rock´n roll, que embalava o meu espírito malcriado.

E hoje...
Invejo aquele que está lá...bem no fim da fila.
Trocaria de olhos fechados os privilégios de hoje, que não permitem mais que eu fique lá, a vida toda, naquela fila.
Trocaria de olhos fechados, privilégio da experiência adquiria,
pelas conversas jogadas fora, na roda tola de amigos com sonhos bobos.
Trocaria meus resmungos e dores, pela longíncua raiva de estar no fim, daquelas filas...
filas de outros tempos.
Falta pouco para ser atendido.
Foi rápido.
Mas juro que não reclamaria se demorasse como seu eu estivesse no fim da fila.
Mas como eu queria estar lá, bem no fim daquela fila!!!
É...mas não será possível voltar a estar lá.
O que salva é que ainda insisto em olhar com ótimos olhos,
as boas bundas, que abundam ao meu lado...
...e ainda entoando o velho, safado, desordeiro e bom rock´n roll...
Nem tudo está perdido, não é????