quinta-feira, 20 de março de 2014

Pois é...

Pois é... - Márcio Barker
´Pois é, ´seu´ Neves, infelizmente os exames dizem que a coisa não está boa. Inclusive, acrescento grave. Indico, aconselho uma cirurgia urgente. Me perdoe, mas devo ser isento. Chance de êxito de apenas por volta de dez por cento. Melhor internar-se já.´
Ou seja, chance de não êxito era por volta de noventa por cento.
E disse tudo isso com um sorriso. Aliás, seja lá qual for o quadro, eles sempre têm o mesmo sorriso.
Aturdido, Neves, o pobre Neves, internou-se. E já foram avisando: ´a cirurgia será amanhã´.
Neves era tido como ´probo´, daqueles que se diziam `tementes a Deus´. Reto, sério, honrado, fiel, sincero, honesto.
Mas diante da iminência dos noventa por cento prevalecerem, preocupou-se. Ainda havia tempo para algumas palavras, a algumas pessoas. Não queria ficar mal com Deus.
Mandou chamar o sócio, Athayde, e abriu-se:
Caro Athayde. Não sei se ficou o se vou. Tá mais com jeito de ir, do que ficar. Assim, chamei você aqui para demonstrar minha sinceridade. Sabe aquelas diferenças no balancete e no estoque? Não foi erro do contador, ou do pessoal do depósito. Falando claro: fui eu quem embolsou. Me perdoe, não quero ir para o inferno.
Athayde teve um acesso, quase um espasmo...mas controlou-se. Afinal o homem estava praticamente para morrer. Virou as costas, e se foi.
Rosinha, a melhor amiga da mulher do Neves, também foi chamada. E escutou:
Rosinha sou sincero com você. Sei que estou comendo você já há um bom tempo. Mas, sinceramente, nunca tive qualquer intenção séria. Por favor, me perdoe. Será que vou para o inferno?
Rosinha, mais passional que o Athayde, mandou-o não só para o inferno, como também recomendou que tomasse naquele orifício corrugado entre - nádegas.

Neves também se lembrou do Aroldo, velho amigo desde os tempos de infância, do carrinho de rolema, a doce época dos sonhos juvenis no colégio, faculdade, farras e mulherada.
Lá estava o Aroldo condoído diante da possibilidade da perda do velho amigo, disfarçando os olhos marejados.
E o Neves foi dizendo:
Aroldo, meu caro. Amigo de todas as horas. Das farras. Dos apertos que você me tirou. Da mão estendida. Das estripulias e desordens no bairro, no colégio, na faculdade. Meu grande amigo que sempre me criticou pelo uso abusivo de regras. Mas tenho que provar a minha sinceridade: justamente com você eu cometi uma exceção a uma regra. Aquela que diz assim: mulher de amigo meu é homem.
Espantoso! Os olhos marejados de Aroldo secaram. Os punhos se fecharam. Foi contido por um enfermeiro. Afinal o enfermo estava quase condenado
E os chamados continuaram.
Para o ex colega de militância à esquerda, confessou-se agora comprometido com o Sistema, um arrogante reacionário.
Para os amigos de longa data a quem devia, sinceramente revelou que nunca pretendeu pagar.
À secretária do almoxarifado da empresa, a qual comia regularmente, revelou de modo crú, que já tinha perdido a graça.  E criticando a performance sexual da moça, afirmou  que  ela nem sequer  sabia mexer bem.
Ao gerente do banco confessou, com toda sinceridade que seu cadastro omitia certos detalhes comprometedores e acrescentava outros não muito condizentes com a verdade.
Ao tabelião, também de modo sincero, confessou que alguns testemunhos eram pura falsidade ideológica.
Choque geral, é claro, mas ao menos caso ocorresse o pior, os tais noventa por cento, ia mais ou menos limpo. Se é que existe esse tipo de mais ou menos.
Dia da cirurgia.
Entra o doutor com seu sorriso. Aliás, seja lá qual for o quadro, eles sempre têm o mesmo sorriso.
Seu Neves, como se sente? Bem, revendo seus exames com mais acuidade, chegamos a conclusão de que, na realidade podemos inverter as porcentagens, o senhor até que está bem. Tranquilize-se.

E daí, que tal?
Pois é....

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