Márcio Barker
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Ainda hoje lembro da figura. Alto, magro, barba comprida. Era o Dr. Péricles. Vizinho de meus pais.
Todos os dias o encontrava no ponto de ônibus.
Usavas roupas sóbrias. Terno escuro, gravata (também escura), camisa branca. Calçava sapatos marrons com meias brancas.
No nariz, um óculos daqueles antigos, que se dizia serem feitos de casca de tartaruga.
Era um sujeito interessante, intrigante, admirável.
Educadíssimo, falava sempre em meio tom de voz. Aliás, o timbre da voz era grave, que combinava com o semblante sempre sério.
Para ele, assuntos não faltavam . Aliás, aquele ponto de ônibus era de uma efervescência intelectual, única. Pena que tomávamos linhas diferentes, mas em algumas ocasiões, dado o interesse da conversa, eu o acompanhei em parte do trajeto.
Elegante no falar, gestos finos, olhar sereno, sorriso discreto, voz baixa, demonstravam o que parecia ser: um verdadeiro cavalheiro.
Falava de tudo com desenvoltura. Havia se graduado e, ouvi dizer que até pós-graduado.
Notei, ainda, que em seu charme, havia também o galanteador. Sempre tinha elogios finos, e na medida certa para as pessoas que estavam naquele mesmo ponto de ônibus. Aliás, em especial para as jovens, e senhoras que também se utilizavam daquele ponto de ônibus. Entre elas, a Matilde.
Ah, me recordo também da Matilde. E como não recordaria?
Estava entre os trinta e quarenta anos. Bonitona...quem sabe mais para charmosa. Apesar da seriedade das roupas da época, era perfeitamente possível vislumbrar certos dotes, impossíveis de serem ignorados. Inclusive eu, ainda bem jovem, reparava, e muito, em certos detalhes. E, confesso, não eram poucos. Sim! O delineamento das coxas sob o vestido leve e esvoaçante de verão. O salto alto que tornava em charme, dos pés até os joelhos. O decote ligeiramente mais ousado, que expunha aquela pele morena, com belas costas, e seios fartos. Claro, apenas dava para ver uma pequena parte, mas eu adorava imaginar o restante deles. Dava até taquicardia, entre outras ''consequências'' físicas.
O pescoço liso, fino, bem feito, tentador. O perfil elegante, charmoso, destacando o nariz ligeiramente arrebitado. E os lábios...a boca...de arrepiar!!! É, eu já era um tanto precoce para a idade...
Mas voltemos ao Dr. Péricles. Como sempre, esbanjava olhares, e contidas palavras elogiosas, para a Matilda.
E, numa manhã, lá estávamos eu e o Dr. Péricles conversando, quando ela chegou.
Nos cumprimentou. E, logo, o Dr. Péricles se aproxima, responde, e vai conversando com ela.
Faz muito tempo, mas lembro até hoje de cada palavra.
Foi assim:
Dr. Olá, Dona Matilda. Passando bem?
M. Felizmente, Dr. Péricles. E o senhor?
Dr. Agora melhor, muito melhor com a sua chegada.
M. Que é isso, Dr. Péricles. Muito grata.
Dr. Indo para o serviço?
M. Sim. Precisa, não é?
Dr. Trabalha onde, me perdoe a curiosidade.
M. Não há problema. Trabalho num escritório.
Dr. Longe?
M. No centro.
Dr. Oh! A senhora deve ser a alegria entre seus colegas, pois não?
M. (Ri) Muito obrigada.
Dr. A senhora estudou o quê?
M. Só fiz até o colegial, depois tive que trabalhar. Não sou uma pessoa ilustrada, nem interessante.
Dr. (enfático) Ora! Ora! Me perdoe!!! Mas que conclusão absurda! Não concordo, em absoluto! Por favor, não se desvalorize. A senhora é repleta de atributos...é é...inclusive físicos, se me permite. Sem maldade, é claro.
M. Ora, muito obrigado, Dr. Péricles. Mas já estou nos trinta e tantos, e ainda luto por conseguir algo.
Dr. Trinta e tantos!!!! Mas é essa a idade, na qual uma mulher começa desabrochar todo o seu encanto, sua magia, energia, sua sedução, meiguice. Diria mais, seu poder de conquista...
M. Oh, muito grata, Dr. Péricles, o senhor é um poeta.
Dr. Sim!!! Um poeta das cores da vida!!! Por vezes um poeta desesperado, ansioso, amalucado...por essas cores. Se é que me entende.
M. Entendo....
Dr. NÃO!!!! Estou certo de que não entende!!! Sabe, a senhora é gentil, seu charme é único, é elegante, charmosa, bonita...
M. Ora, não exagere....
Dr Exagerar???. Nãooo!!!! Não há exagero algum!!!
M. Imagine....
Dr. Sim!!! Eu imagino...sim!!! E não sabe o quaaaaanto eu imagino!!! Não faz idéia. Não faz ideia até onde a maldita imaginação pode chegar.... é um desespêro!!! Pois a senhora, Dona Matilde, está muito bem...
M.Obrigada...
Dr. Diria mais...bem demais. A senhora é formosa!
M. (já meio sem graça) Grata...
Dr. A senhora é uma deusa!!!
M. Não exagere
Dr. É isso mesmo!!!
M. Calma....
Dr. ...graciosa, com essa sua postura....com esse seu... corpo!!!
M. Dr. Péricles!!!
Dr. Me desculpe, mas é isso mesmo, viu??? A senhora é demais. A senhora é boa....BOAAAAA...está me entendendo...
M. (escandalizada) O que é isso....???
Dr. É isso mesmo, viu???? BOAAAA, GOSTOSAAAAAAA! muito GOSTOSAAAAAA!!!!
M. (apavorada) Dr. Péricles. O senhor é um cafajeste!!!!!
Dr. Simmmmm!!! Cafajeste e um taradooo assumido, também. Me perdoe. Esses braços, essas coxas, essas nadegas....nadegas o caralho, BUNDAAAAA MESMO! Sabe eu queria rasgar você, deixar só o talo.
M. Cafajesteeeeee!!!!!
Dr. Pera aí! Pera aí!!! Não vá embora. Tá pensando o que? Que é assim? Fica aí botando panca, e desesperando um pobre cristão, sua desencaminhadora de pai de família!!! Volta aquiiiiiiiiiii!!!!
Bem, a essas altura, a pobre Matilde, vira as costas, e desaparece, enquanto o sereno, pacífico, educado, probo, moralista, charmoso, cultíssimo, finíssimo, Dr. Péricles prossegue, aos gritos e sendo contido pelos passantes.
Dr. Onde vai? Vem cá seu demônio, desencaminhadora de pais de família, eu ainda vou te processar, miserável, gostosa, gosta de tirar o sono de um pobre cristão....ainda nos encontraremos no infernoooooo!!!!!!
Pobre, Dr. Péricles. Dias depois, fiquei sabendo pelo meu pai, que ele tinha sido internado. E ele não soube me dizer o motivo...
Saudades.
Um comentário:
Parabéns! conseguiu retratar em palavras o quadro do Walter D'Avila.
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