O
Salto
Márcio
Barker
imagem: internet
O
Souza já tinha passado dos sessenta. Até aí, nada demais. Mas,
acontece que estava, digamos, meio surrado, desgastado, sofrido. Eram
vértebras já mal posicionadas, na coluna, próstata sempre
problemática nessa idade. Joelho ruim. Ereção duvidosa, instável, descontinuada. Mau humor,
pigarro insistente, devido a anos de cigarro, flatulência excessiva,
e por aí, vai.
Estudou
até o ensino técnico, e não se interessou ir mais além. Já
estava bom demais. Trabalhou anos numa firma na área financeira,
contando os dias para a aposentadoria.
Quando se aposentou, logo
colocou aquele conhecido “uniforme”: paletó de pijama e chinelos
(com meia, no inverno). Sua preocupação, digamos, intelectual era jogar dominó, com semelhantes a ele, assistir TV, ir ao supermercado (pra
reclamar dos preços, aliás, sua única manifestação de rebeldia consciente. O que ficava no inconsciente os intestinos completavam a sua revolta.
Eram caganeiras de origem nervosa, fenomenais).
Aposentado,
ia ao banco sempre que precisava de dinheiro. Aposentaria modesta,
que resultava numa vida muito bem controlada, para que as coisas não
desandassem.
E o banco, onde recebia sua aposentadoria, era daqueles que primava por um atendimento
bem ruinzinho.
Talão de cheque? Só no mês que vez... ad infinitum.
E, para dizer a verdade o Alves não ligava para esse ''detalhe''. preferia pegar o dinheiro ''in natura''
E
todo mês era aquele mesmo inferno, na infernal fila.
Nela, Nada escapava de seus olhos, e crítica.
E,
aquelas horas infinitas na fila davam vasão ao seu senso crítico, filosofia e raiva.
Puta
que pariu, até quando? Olha o tamanho desta fila. Atrás de mim,
essa velha, já meio gagá. Na frente, esse caduco peidorreiro. Só
comigo.
Hummm,
qual dos caixas que vai me atender? Será aquele com barba por fazer,
ou a gostosa do lado? Já sei, aposto que será o cara com barba por
fazer. É sempre assim. Puta merda, será que não dou sorte, nem
nisso?
Cacete,
acho que esqueci minha identidade. Caralho, se esqueci, e agora?
Deixa ver. Ah! Está aqui, puta merda, ainda bem.
E
aquele idiota, ali na frente. Olha só nas mãos dele: conta de luz,
água, telefone, carnê de não sei o quê, imposto de renda,
aluguel, prestação do carrinho velho e mais a puta que o pariu. Puta
que pariu mesmo! Olha só tempo para ser atendido. Será que vive na
Idade da Pedra? Esqueceu que pode pagar no caixa eletrônico? Vai ser
burro assim na puta que pariu.
Hummmm,
olha só aquela gracinha. Gostosa, heim? Dá até pra ver a marca da
calcinha. Olha lá, toda sorridente, solta, falante, lustrosa. Que
peitos....éééé, mas já era. Tô velho. É remédio para baixar a pressão, e subir o bilau. Contraditório! Lembro do meu amigo
Vilmar que dizia querer ficar indiferente, depois de certa idade.
Assim não passava vontade, e nem pareceria ridículo.
Porra,
já estou aqui há uma hora e meia!!! Não, uma hora e cinquenta!!!
Quase duas horas, e essa merda da fila não anda. Ah, sim. Acho que o
dinheiro da agência acabou, e foram buscas mais, na Matriz. E até agora não vi nenhum corro- forte chegar. Que
absurdo, isso que é competência!!! Pior, agora. Vontade de mijar,
Puta merda, e agora? Fudeu. Tudo é difícil, sacrifício, encheção de
saco. E essa meeeerda de fila que não vai. Pooorraaa!!!!
Mais
uma hora e meia de fila, Alves finalmente está diante do paraíso, ou
seja, na boca do caixa. Mal cumprimenta o funcionário.
Por
favor, vim pegar minha aposentadoria.
E
o caixa
Toda
ela?
E
o Sousa
Sim
O
caixa
Um
momento, vou verificar.
O
Sousa
Mas
verificar, o quê? Não tenho aumento há séculos!!! É sempre a mesma coisa.
O caixa pareceu não
ouvir.
Já exacerbado, Sousa
acompanha todo o movimento do funcionário, indo pra lá e pra cá,
enroscando em rápidos papos com os colegas, tomando cafezinho, risadas, gracinhas com as colegas, abrindo e fechando
gavetas de arquivo, verificando, anotando.
Depois de um século e
meio, o funcionário chega no guichê, e diz tranquilamente:
Seu
Sousa, o seu pagamento só cai amanhã.
Depois
me contaram que, ignorando as suas dores na coluna, o Sousa deu um
belo salto sobre o balcão, e com as mãos crispadas, tinha como
alvo, o pescoço do pobre caixa do banco.
Depois? Não sei o que aconteceu.