terça-feira, 13 de setembro de 2022

 

O Salto

Márcio Barker

                                                                           imagem: internet


O Souza já tinha passado dos sessenta. Até aí, nada demais. Mas, acontece que estava, digamos, meio surrado, desgastado, sofrido. Eram vértebras já mal posicionadas, na coluna, próstata   sempre problemática nessa idade. Joelho ruim.  Ereção duvidosa, instável, descontinuada.  Mau humor, pigarro insistente, devido a anos de cigarro, flatulência excessiva, e por aí, vai.

Estudou até o ensino técnico, e não se interessou ir mais além. Já estava bom demais. Trabalhou anos numa firma na  área financeira, contando os dias para a aposentadoria. 

Quando se aposentou, logo colocou aquele conhecido “uniforme”: paletó de pijama e chinelos (com meia, no inverno). Sua preocupação, digamos, intelectual era jogar  dominó, com semelhantes a ele, assistir TV, ir ao supermercado (pra reclamar dos preços, aliás, sua única manifestação de rebeldia consciente. O que ficava no inconsciente os intestinos completavam a sua revolta. Eram caganeiras de origem nervosa,  fenomenais).

Aposentado, ia ao banco sempre que precisava de dinheiro. Aposentaria modesta, que resultava numa vida muito bem controlada, para que as coisas não desandassem.  

E o banco, onde recebia sua  aposentadoria,  era daqueles que primava por um atendimento bem ruinzinho. 

Talão de cheque? Só no mês que vez... ad infinitum. E, para dizer a verdade o Alves não ligava para esse ''detalhe''. preferia pegar  o dinheiro ''in natura''

E todo mês era aquele mesmo inferno, na infernal fila.

Nela, Nada  escapava de seus olhos, e crítica.

E, aquelas horas infinitas na fila davam vasão ao seu senso crítico, filosofia e raiva.


Puta que pariu, até quando? Olha o tamanho desta fila. Atrás de mim, essa velha, já meio gagá. Na frente, esse caduco peidorreiro. Só comigo.

Hummm, qual dos caixas que vai me atender? Será aquele com barba por fazer, ou a gostosa do lado? Já sei, aposto que será o cara com barba por fazer. É sempre assim. Puta merda, será que não dou sorte, nem nisso?

Cacete, acho que esqueci minha identidade. Caralho, se esqueci, e agora? Deixa ver. Ah! Está aqui, puta merda, ainda bem.

E aquele idiota, ali na frente. Olha só nas mãos dele: conta de luz, água, telefone, carnê de não sei o quê, imposto de renda, aluguel, prestação do carrinho velho e mais a puta que  o pariu. Puta que pariu mesmo! Olha só tempo para ser atendido. Será que vive na Idade da Pedra? Esqueceu que pode pagar no caixa eletrônico? Vai ser burro assim na puta que pariu.

Hummmm, olha só aquela gracinha. Gostosa, heim? Dá até pra ver a marca da calcinha. Olha lá, toda sorridente, solta,  falante, lustrosa. Que peitos....éééé, mas já era. Tô velho. É remédio para baixar a pressão, e subir o bilau. Contraditório! Lembro do meu amigo Vilmar que dizia querer ficar indiferente, depois de certa idade. Assim não passava vontade, e nem  pareceria ridículo.

Porra, já estou aqui há uma hora e meia!!! Não, uma hora e cinquenta!!! Quase duas horas, e essa merda da fila não anda. Ah, sim. Acho que o dinheiro da agência acabou, e foram buscas mais, na Matriz.  E até agora não vi nenhum corro- forte chegar. Que absurdo, isso que é competência!!! Pior, agora. Vontade de mijar, Puta merda, e agora? Fudeu.  Tudo é difícil, sacrifício, encheção de saco. E essa meeeerda de fila que não vai. Pooorraaa!!!!


Mais uma hora e meia de fila, Alves finalmente está diante do paraíso, ou seja, na boca do caixa. Mal cumprimenta o funcionário.


Por favor, vim pegar minha aposentadoria.

E o caixa

Toda ela?

E o Sousa

Sim

O caixa

Um momento, vou verificar.

O Sousa

Mas verificar, o quê? Não tenho aumento há séculos!!! É sempre a mesma coisa.

O caixa pareceu não ouvir.

Já exacerbado, Sousa acompanha todo o movimento do funcionário, indo pra lá e pra cá, enroscando em rápidos papos com os colegas,  tomando cafezinho, risadas, gracinhas com as colegas, abrindo e fechando gavetas de arquivo, verificando, anotando.

Depois de um século e meio, o funcionário chega no guichê, e diz tranquilamente:

Seu Sousa, o seu pagamento só cai amanhã.

Depois me contaram que, ignorando as suas dores na coluna, o Sousa deu um belo salto sobre o balcão, e com as mãos crispadas, tinha como alvo, o pescoço do pobre caixa do banco.

Depois? Não sei o que aconteceu.






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