quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Desdizendo

 
Desdizendo - Márcio Barker

Ainda ontem...
Com o fogo da juventude,
você se indispunha contra o marasmo da velhice!
E, em alto e bom som, anunciava a luta,
a luta por novos valores,  novas idéias, sufocando o que envelheceu!
Alardeava o seu apoio aos novos rebeldes de um novo tempo.
Novos rebeldes que lutavam contra  idéias de  um passado já rançoso....longínquo!
Vocè gritava a plenos pulmões, pregando a luta por justiça!! E defendendia idéias radicais.!!
Era a favor da luta aberta contra o Estado opressor e terrorista!
Esbravejava, com dedo em riste contra a hipocrisia do sistema!
No verso e na prosa, deixava claro a sua rebeldia.
A rebeldia contra tudo e todos que fazem  desse mundo, o que tragicamente hoje, ele é.
Você era o meu herói!

Mas hoje...
Para meu espanto, você defende esse mundo tal e qual como hoje  ele é.
Hoje se rebela, de dedo em riste. esbravejando em defesa do sistema.
E condena a luta  contra o Estado, que, para você, é hoje um pai, não mais o opressor.
E a sua rebeldia vai contra a luta aberta,  a mesma  luta de seus antigos heróis. 
Antigos heróis,  que para você, agora não passam de terroristas.
E se hoje grita a plenos pulmões é contra idéias radicais que você esqueceu lá, bem longe no fogo de sua tão distante  juventude.
Em alto e bom som anuncia a sua luta, contra novos pensamentos, novos valores, em nome do marasmo de sua velhice!
Puxa!!!
Como é rápido o caminho entre o rebelde e o reacionário, entre o lutador e o conformado...coisa de poucas décadas.
Não é a toa que hoje não reconheci você!!!

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Chatice

 
Chatice - Márcio Barker

 Outro dia recebi um convite, aliás, muito especial. Especialíssimo, pois era para ir ao encontro anual dos antigos camaradas, de outros tempos.
Fazia tempo que não comparecia a esses encontros. Fiquei animadérrimo.
Daí vem aquela curiosidade: como estará o fulano, sempre falante, “garganta”, metido a comedor? O beltrano, piadista, daqueles que conta os maiores absurdos com expressão de seriedade absoluta? E a siclana? Nossa como estará? Gostosíssima, que coxas!!! Seios deslumbrantes!!! Às vezes eu ia ao cinema com ela...saia de lá sem saber sequer o título do filme...
Ah, sim. Tinham os eternos atletas no futebol, vôlei, basquete, e por aí vai.
Bem, depois de anos já não eram mais os mesmo. Normal.
Fui ao encontro numa pizzaria.
Logo de cara foi difícil encontrar a mesa onde estavam só depois que me chamaram. Estavam bem debaixo do meu nariz. (mudaram tanto, ou eu que já não enxergava bem?)
Fiquei preocupado. Deveria estar como eles. Dei uma olhada de relance num espelho do salão. Não estava tão mal assim. Claro, uma análise suspeita.
Cumprimentos, abraços, beijos, piadas, afagos do tipo:
"não mudou nada"
Ou,
como você está bem” etc e tal. Tudo “média”, pura diplomacia.
Sento.
E logo vou atacando o antepasto formado por torradas ao alho e óleo, azeitonas verdes (e pretas), bolinhas de manteiga, cebola no óleo e vinagre, além do queijo provolone à milanesa.
E, ao lado a conversa rolava animada:
E o triglicéris, como anda?”
Ou ainda:
O médico me receitou tal coisa”.
É mesmo? E de quantos miligramas?
Cinquenta. E pra você?”
Cem, mas duas vezes ao dia”.
Procurei fazer ouvidos de mercador, e concentrar no maravilhoso couvert.
Porém era inevitável, pois daí, do outro canto da mesa, alguém foi dizendo que andava urinando mal, por causa de uma obstrução no canal. E que, imagine, teve o pobre, passar por uma sessão de não-sei-o-quê, para desentupir.
Puxa, e era justamente o Aurélio, um verdadeiro (ou se dizia) atleta sexual. Logo ele, entupido.
Bem, coluna, então era uma coisa momentosa, assim como a pressão alta.
Enquanto isso, eu prosseguia atento ao couvert, agora degustando, generosas fatias de pão italiano, com um molho à base de alho torrado, azeite de oliva orégano e algumas pitadas de queijo parmesão ralado. Imbatível.
Mas a coisa continuava à minha volta:
Taquicardia, descompassos, insônia, calo (com e sem olho de peixe), tosse de cachorro, rinite, visão embaçada, formigamentos nas extremidades, câimbras, pesadelos, insatisfação, ejaculação retardada, hemorroidas, amolecimento prematuro, colesterol alto (do bom e do mal), açúcares, insuficiências, pedras (tanto nos rins, quanto na vesícula), má irrigação sanguínea periférica, disfunções várias dos tipos intestinais, circulatórias, inclusive erétil, desequilíbrios (físicos e mentais) etc e tal. Não sei, mas tive até a impressão, de ter escutado alguém falando em prótese peniana.
A essa altura, eu já comia a segunda fatia de uma bela pizza de aliche (que eu amo), junto com outra de mussarela, ambas regadas a um incrível azeite de oliva italiano, enquanto refrescava-me com um fantástico guaraná. Aliás, é bom que se diga, que somente eu quem se deu conta da chegada das pizzas.
O Neves era um dos mais palestrantes mais contundentes. Além de desfilar seus inúmeros problemas (de saúde e com o fisco), também passou a palestrar sobre a morte de seus pais fartando-se em detalhes. Coisa, aliás, que eu já sabia de cor e salteado. Claro, não deixou de palestrar sobre sua hemorroida, pré catarata, vesícula entupida, colesterol batendo lá em cima, e manchas na visão, pequenos tremores e visão semi-turva. À boca pequena, maldosa, aliás, dizia também estar sofrendo de ereção hesitante.
Que coisa!!!
Que teria passado com aqueles heróis e semideuses?
Parece que foi há pouco que a conversa versava sobre mulherada. Convenhamos, um assunto bem mais saudável, excitante e, visualmente lindo.
E era aquela autoafirmação.
Todos, rigorosamente todos se diziam imbatíveis na arte da sedução. Hipnóticos. Travava-se uma verdadeira guerra de quem era o melhor.
Um dizia que tinha saído com uma princesa, e teria “dado” umas três (às vezes até, sem tirar). O outro tinha "garfado" uma loirona daquelas, (eu sempre preferi as morenas. Imbatíveis, em minha opinião, é claro). E a dita loirona seria “uma verdadeira égua”, na qual ele teria “cavalgado” por uma noite inteira.
Ah! Sim, e havia aquele cuja agenda lotatérrima de beldades (da loira a morena, da mulata a ruiva) que chegou a ter problemas de horários (horários encavalados).
Eram bravatas após bravatas. E, naquele tempo, eu também preferia só escutar...era divertido.
Ah, sim! Tinha mais um coisa que marcou aquela doce época: a milagrosa Bezentacil, de um milhão e quatrocentas mil miligramas (diziam que doía fundo na alma...e na bunda), sim, pois foram muitas as gonorréias tratadas à base da lendária Benzentacil. Eu nunca tomei. Tinha mais critério...e menos bazófia.
Bem, agora enquanto eu me regalava com duas fantásticas fatias de pizza de gorgonzola e outra de presunto Parma, a conversa continuava.
Agora o assunto derivou para um leque impressionante de calmantes, antidepressivos, soníferos, antidistônicos, energizantes, complexos vitamínicos passando por modernas técnicas cirúrgicas, do tipo “explosão” de pedra nos rins, raio lesar, etc.
Impressionava a desenvoltura como palestravam sobre tais temas, Pareciam dominar a fundo, o assunto. Entenderiam eles também de supositórios? (já estava meio irritado)
Seriam os mesmos que eu escutei discutirem sobre as idas e vindas da política nacional e internacional? Normalmente eram revolucionários que queriam mudar a ordem mundial. Mas que tinham predileções, digamos "pequeno burguesas", pois se falava também, muito da “performance” do carro de cada um (carros naturalmente presenteados pelos pais).
Um deles tinha o celebérrimo Opala seis cilindros, envenenado, o outro o potente Camaro V8, ou o Corcel assim e assado.
Faziam de zero a cem e dois segundos e meio. O outro tinha um Dodge Charger turbinado. Tinha também aquele outro com um Maveric V8. E, não faltava o sujeito que possuía um fuscão, 1500 cc, “preparado”.
Por um instante meu garfo fica entre o prato e minha voraz boca. Foi quando indaguei: onde foram para aquelas belas máquinas...e que fim tiveram seus intrépidos motoristas?
AH, sim. Estavam ali mesmo, disfarçados e escondidos em meio a cabelos brancos, reluzentes carecas, rugas, dores, desconfortos vários, irritação, mau humor, reclamações. Antigos rebeldes que o tempo transformou em reacionários.
Quando terminei a minha incrível sobremesa; um magnífico bolo de chocolate, recheado com mouses e morango, acompanhado por belo creme de papaia ao cassis, chegou a hora da despedida.
Os abraços e os votos de sempre, além do clássico "vamos nos ver". Terminado, eu sumi rápido.
Triste.
Bem, envelhecer qualquer um envelhece...mas tem gente que exagera.
Não dá para curtir as mazelas da velhice, como as aventuras da juventude.
Perdoe-me, você acha que eu estou errado???

sábado, 2 de novembro de 2013

Lentilha


Lentilha - Márcio Barker
Mesa farta. Fome idem
Camarão com alho e limão, frito no azeite de oliva.
Arroz, tinha algumas variações. Carreteiro, com lingüiça; simples; com cebola; e azeitona preta.
Costela assada no forno com agrião. No acompanhamento algo eclético: batatas à dorê, quiabo, polenta frita e polenta ao molho de tomate, farofa, macarrão, pasteizinhos de carne e queijo
Frango assado recheado com farofa refogada na manteiga, com alho frito, azeitonas verdes, salsinha, cebolinha, pimenta do reino e ovos fritos
Batatas: palha, frita, (já contabilizando as a dorê)
Um leque de maioneses: de azeitona verde; preta; alho, simples; e ervas finas.
Tutu de feijão à paulista; à mineira: e à carioca.
Feijão fradinho com linguiça defumada.
Uma pratada de bacon frito e outra de torresmo gordo.
Também rocambole de carne assada, recheada com legumes.
De sobremesa, bananas cozidas ao açúcar mascavo, flambadas com licor de cerejas, derramadas sobre taças de sorvete de creme.
Não faltaram os lendários pudins de pão e de leite condensado.
Além de doce de abóbora, doce de leite, fios de ovos na cereja licorosa, doce mamão ralado.
Sento-me a mesa.Uma mesa perfeita .Orgulhoso (e com fome), sei que na realidade eu era responsável algumas dessas delícias.
Gentilíssima, com sorriso de orelha a orelha, coberta de boa vontade, a Julinha, minha doce esposa, se apressa em servir-me. Apesar de reconhecer sua bondade, sempre preferi eu mesmo me servir.
Claro, sei o que quero, o que não quero, a quantidade, não gosto de sobrepor alimentos, e toda uma série de esquisitices que tenho. Sou um chato.
Mas a afabilidade era de tal ordem, que cedi.
O que vai querer?” Disse ela com aquele bendito sorriso.
Respondi:
Um pouco de costela...não, não...menos por favor. Arroz...não, o simples. Polenta, por favor. Não! Não! A frita. Um pouco de farofa...”
E ela me interrompe.
Quer lentilha, também?”
Aqui cabe um parênteses. Não suporto lentilha, mas sempre que tem a maldita lentilha, ela me pergunta se quero. Mesmo diante de minha negativa, ela insiste. Querem ver?
E lá vem ela:
Lentilha. Quer também”.
Eu.
Não. Muito obrigado.”
Ela.
Um pouco de tutú?”
Eu
Não. Por favor, só o feijão”.
Ela.
E um pouco de lentilha também, né?”
Eu
Não!”
Ela
AH! Tá. pastéis?” (Adoro pastéis)
Eu
Sim. Um por favor.”
Ela
Lentilha”
Eu, já semi-espumando
Escute. Desde que nos casamos, e já fazem al-gu-mas dé-ca-das, nun-ca co-mi len-ti-lha. E toda vez que tem len-ti-lha você me oferece. Eu de-tes-to lentilha. Certo?”
E ela
Ah...tá. É mesmo. Verdade. Você não gosta de lentilha. Mas é tão gostoso. Eu,por exemplo, a-do-ro sopa de lentilha. Não quer mesmo???
Eu
Grrrrrrr”
Ela
Tá bom. O que mais? Ah, sim. O tutú a mineira.”
Eu
Não, o a paulista”
Ela
Um pedaço do peito do frango...”
Eu
Não. A sobrecoxa”
Ela
Ah, tá. E um pouco de lentilha...”
Eu
Put...perdão. Não!!! Lentilha...NÃ-O!!! Certo?”
Ela
Como você é chato, não? Estou querendo ser gentil, e fica assim...nãoé prá tanto!”
Eu
TÁ...”
Ela
“Maionese?”
Eu
“Por favor”
Ela
“A de azeitona preta?”
Eu
“Não, da verde”
Ela
“Mais alguma coisa?”
Eu
“Não. Muito obrigado!!!”
E sorrindo, com seu rosto angelical, ela dirige o prato para mim. Um belo prato escolhido à dedo, mas... Não!!! menos a maldita lentilha que ela havia colocado, bem debaixo do pastel!!!!!!
À partir daí eu soube da continuação dos fatos, por meio de testemunhos dos que estavam à mesa.
Toda a tigela de lentilha foi esfregada (com reqintes de crueldade) na cabeça da pobre Julinha.
Após o que, seu rosto foi afundado, mergulhado e esfregado no pudim (de pão, pois poupei o de leite condensado por ser o meu predileto)
Quando eu peguei o frango, para surra-la, fui contido pelos comensais, vizinhos e seguranças da rua.
Meu Deus!!! Matei a Julinha por causa da maldita lentilha.
Já dono da razão, me vejo horrorizado jogado não chão, suado, molhado, arfante, febril e tremendo. Olho a minha volta. Vejo ao meu lado, minha cama!!!
Quem bom! Quem bom! Foi só um simples pesadelo.
Em todo caso vou enfatizar a Julinha, que nunca mais me sirva lentilha!!!
Mas será que vai se lembrar...?????
Maldita lentilha!!!


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Chegou de repente


Chegou de repente - Márcio barker

Chegou de repente, nem se anunciou. E o percebi com o rabo dos olhos.
Ficou me olhando.
Olhar sério, profundo, misterioso.
Mas o que quer me dizer?
Instintivamente pergunto: “O que foi?”
Nada.
Só o silêncio
Bem, não estranho, estou acostumado ao seu jeito de ser.
Mas que capacidade terá ele de dizer tanto, em seu silêncio?
Congelado continuo olhando para mim.
Eu o conheço há sete anos.
Presença diária.
Não me perde de vista.
Bom sujeito. Amigo nas horas certas.
Discreto, não é de grandes efusevidades, sereno.
Se manifesta pouco...às vezes até parece tímido.
Pergunto novamente o que queria.
Ele se vira, e vai indo. Só não “deu de ombros”, por ser um camarada educado.
Mas é daqueles que está sempre por aí, por perto, oferençendo sua companhia.
Brinca pouco, não sorri, mas é atencioso.
Não é cheio de grandiloquências, mas faz falta quando está longe.
Sua amabilidade está nas entre linhas,
e em pequenos detalhes de suas atitudes.
Se não é piadista, ou do tipo grudento e babado que cansa até,
ele não renega, não aborrece, não xinga, não enche, não reclama.
Em troca me presenteia com a sua imensa paz e tranquilidade.
Ele me faz muito bem.
De repente ele retornou...pulou no meu colo,
e disse um educado “MIAU”.
Meu grande amigo, Charles, o gato.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Era você? Não. Não era você...ou era?

Era você? Não. Não era você...ou era? - Márcio Barker

          
Amor de adolescentes:
Sonhos tolos, ingenuidade, juras.
Também muito tesão, loucura e planos bobos.
A mulher, das mulheres. Puxa!
Bonita! Sim, muito bonita. Morena de olhos escuros.
Um dia acabou tudo. Fazê o quê?
Passou para a história.
O doído rompimento se transformou numa doce lembrança.
O rosto bonito se perdendo no tempo...também os gestos suaves, os doces sonhos.
Sim! Uma referência de um tempo que foi bom.
A imagem persiste na juventude e na maturidade.
Nada sofrido, nada que machucasse, não! Nada disso.
Apenas um doce imagem, que valia a pena ser recordada.
Um dia, e olha que depois de tempo...e bota tempo nisso, sem querer nos vimos.
Nossa!!! Apesar das décadas, a silueta era a mesma. Os corações disparam.
Longo abraço. Beijo também.
O tempo não tirou nada daquele rosto. Os ralos vincos que colocou, apenas acrescentaram.
Continuava bonita, como nos velhos tempos...como nas lembranças.
Mas...o sorriso... tinha algo, não sei...não era o mesmo.
O brilho nos olhos me recordarm a doce juventude.
Mas...o olhar, tinha algo...era deslumbrado, com toques de abobalhado...
...sem dúvida não era o mesmo.
Seus doces sonhos e as grandes preocupações com os infinitos problemas desse mundo, eram outros...
...reduzidos ao egoísmo.
A voz que falava ardentemente de horizontes distantes a serem conquistados...
ou a raiva das desigualdades e injustiças...
também reduzidos ao pó da bobagenzinha...
da picuínha de um cotidiano cinza...
nem lá, nem cá.
Escutando o seu blá-blá-blá...
...agora vazio...
...sem nexo...
...sem nada, fiquei perdido entre o rosto bonito...e o espírito oco!!!
Confuso. Me levantei. Fui embora...ela nem percebeu.
Papagaiva à vontade.
E até hoje me pergunto:
“Era você? Não. Não era você...ou era?”
Sei lá...já era...foram outros aqueles tempos...não são mais.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Mau...gênio

                     
Mau...gênio - Márcio Barker

                                     


Daí saiu espumando do consultório médico.
Não era para menos.
Na mão esquerda um calhamaço de receitas, com um monte de nomes estranhos.
Coisa para diminuir o açúcar, outro para cair a pressão, mais um para cortar o colesterol, não sei o quê para ajudar o fígado, também outras coisas para a próstata e remédio para afinar o sangue. Tinha mais, mas não lembro.
Na mão direita, duas listas.
Uma graaaande, assim, com um montão de “não pode isso”, “não pode aquilo” e “tomar cuidado com aquilo outro”.
A outra,  bem curtinha assim, ó, pequenina, com o que ele “podia”.
Ainda no consultório, depois de ouvir tantas limitações e recomendações , levantou com o dedo em riste para o doutor.
“E...e trepar, será que eu posso???”
E o outro inocente...
“Evite estripulias. Não suba em muros e não trepe em árvores.”
Saiu espumando, chutando latas, sentido-se um “João-ninguém”.
Foram anos de picanha, com aquela borda tostada de gordura. Huummmm...
Quem sabe toneladas de petiscos: cebola frita, salame ao vinagrete, batata frita (com maionese),  hambúrgueres....ah, sim, aquele bendito provolone à milanesa.
Quer coisa melhor?
E  isso  para acompanhar a fantástica cerveja geladérrima, e a abençoada caipirissíma de pinga ou vodka, com gelo, limão e açúcar.
AHHHH...e tudo naqueles templos do rejuvenescimento. Naqueles lindos e maravilhosos botecos, barzinhos, ou sei lá mais o quê,  onde se lavava a alma da poluição do dia-a-dia, do escritório, do trânsito,  da grosseria da maldita megalópole, dos rolos em casa com a mulher...
Era naquelas ilhas do prazer, que tudo caia no  fantástico esquecimento.
Eram verdadeiros jardins paradisíacos, onde entre petiscos e  bebericos, sobravam saborosas, generosas e intermináveis gargalhadas na roda de amigos...a verdadeira família.
Tudo isso envolto pela dança da fumaceira de cigarros a fio.
Foram anos e anos dessa vida abençoada. Mas...
Um dia o peito acendeu a luz vermelha. Foi parar no hospital.
Quatro safenas. E pensou: “to fudido”...e estava mesmo...coitado, que vida injusta.
Afinal, não estava fazendo mal a ninguém.
E pelas ruas se julgava  um ”Zé Mané”. Perdeu o chão, as raízes, o sentido da vida.
Não poderia mais beber com os amigos...cairia no esquecimento?
Em vez da picanha, no máximo o bifezinho grelhado...sem sal e mais nada.
Em vez do provolone à milanesa, um  refogadinho de chuchu.
É de chorar.
Mas e os avanços da medicina. Cadê eles?
E o doutor: “Já consegue incríveis façanhas...mas ainda não o impossível”.
Merda!
E, perdido em sua tragédia, tropeça em algo, na calçada. Era uma espécie de lata.
Para seu pasmo, sai de dentro um gênio.
É, sim. Aquele gênio clássico: Turbante, narigão (denunciando  sua origem), colete, e uma fumaça  embaixo dele.
E vai dizendo:
“Às suas ordens, mestre. Libertou-me, em troca concedo quantos desejos quiser.”
E o outro:
“Ah é! Então vai anotando.
Quero dentes que não se quebrem no duro, e não estraguem no açúcar.
Quero um estômago à prova de úlceras.
Um par de pulmões  que suportem prá lá de cinco maços por dia.
Figado à prova de álcool, e de enjôos. Artérias  resistentes a depósitos de colesterol, rins, pâncreas e vesícula,  acima de qualquer suspeita.
Intestinos à prova de desarranjos e um fiofó de aço para agüentar o tranco.
É  só isso o que desejo, senhor gênio.”
E o gênio:
“Só?  Façanhas eu faço...mas o impossível tá difícil.”
Aterrado o infeliz pergunta no máximo do ódio:
E TREPAAAAAR, EU POSSO????”
Desculpem, mas fiquei sem saber qual foi  a resposta do gênio.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Memória Rota

Memória Rota - Márcio Barker
Surgiu do nada. De repente, de uma hora para a outra, de trás de uma prateleira de supermercado. E veio firme em minha direção.
Braços abertos, sorriso de orelha a orelha, olhos esfuziantes. Aquele abraço. “plá-plá-plá”
No meu ouvido esquerdo escuto:
“Mas por onde tem andando? Onde se enfiou? Nunca mais soube de você. Que é isso, seu sumido?”
Terminado o abraço, olhei rápido para o rosto, para saber, afinal, quem era o efusivo amigo.
Ninguém. Rigorosamente ninguém de quem me recordava.
Bem certamente um engano. Não tive tempo de esboçar uma palavra. E foi dizendo:
“E daí, grande Márcio, como está? Puxa vida, nunca mais soube de você. Continua lá na ‘Cultura? Você já está lá há décadas, não?”
Um frio corria pelas pernas, e os pés deram sinais evidentes que iriam falhar.
Mas, cacete!!! Quem era aquele cara?
E continuou.
“E aquele seu fuscão, cor de papagaio, ainda está com você? Eu lembro, o nome daquela cor no certificado é “verde hippie. Belo carro!!!”
E eu, na mesma. Quem era aquele sujeito??? Aquele nariz em formato de saxofone, em ré, a semi-careca, e os olhos “cor-de-burro-quando-foge”, como dizia vovó, não me avivavam a memória.
Irritado ia perguntar finalmente que era aquele sujeito. Não tive tempo.
“E a dona Júlia, como tem passado? Recuperou-se bem da cirurgia cardíaca?”
Mas de qual delas? Pensei. Pois foram algumas.
“E aquele seu belíssimo gato? AH!AH!AH! Que safado”
Em casa são três os gatos...todos safados.
Entre o pânico, ódio e surpresa, eu tentava escarafunchar na cara daquele sujeito, para saber de quem se tratava.
Bem, a vestimenta já dizia alguma coisa: Paletó marrom, calça cinza (sem vinco e com botões na vista) camisa branca, gravata azul claro (do tipo “azul calcinha”), sapato marrom e meias brancas.
Não sei por qual razão mas penso que essas é a vestimenta de um chato clássico...será? Perdoem-me se estiver enganado. Posso estar comentendo uma discriminação.
Ah, sim. Bigodinho e esmalte incolor nas unhas da mão (não vi as dos pés).
Desodorante forte e enjoativo somando-se a isso, a loção pós-barba, de matar.
Fiquei preocupado e muito irritado comigo mesmo. Que cretino sou eu. Peguei-me no pulo. Julgando os outros pelas aparências, coisa que sempre condenei.
Tá vendo, sou um réles mortal como tantos por aí.
Mas a novela continuava. Imaginem a minha situação, o cara devia saber até o número de minha identidade.
Seria um agente secreto? Alguém ligado a serviços de informações e contra informações. Ou seria alguém de algum serviço de cobrança? Ou um polícia secreta que iria entregar-me uma intimação? Talvez alguém do serviço secreto, de alguma potência estrangeira, apenas checando alguns dados, para seqüestrar a pessoa correta.
E continuou
“Você sempre comprou nesse supermercado, não é? Sempre encontro você por aqui. E ainda tem o cartão do Banco tal? Me lembro que você nunca foi fãn de cartões. Faz bem, como você sabe, eu também não gosto. Aliás me lembro muito bem daquela história que você me contou quando clonaram o seu cartão. Puxa vida. Na época foram uns quatro mil e quinhentos!!! Que absurdo. Mas você teve sorte que o Banco reembolsou tudo”.
Olhos estalados, boca entre aberta: Meu Deus! É mesmo, eu nem me lembrava mais dessa história.
Coração no mínimo a cento e cinqüenta. A pressão deveria estar na casa dos trinta e cinco por vinte e oito. E eu, simplesmente não-sabia-quem-era-aquele-sujeito!!!
E agora. Que pergunta eu faço a ele, para não parecer mal educado.
Minha saída: perguntas genéricas.
“E a mulher, como vai?”
E chutei: “Eu a via na última vez que nos vimos aqui.”
E responde com certo pasmo:
“A Cidinha?”
“Sim, a Cidinha.”
“Pensei que tivesse me perguntado pela Célia”.
“Célia”. Mas quem é essa tal de “Célia”? À propósito, também não lembrava de nenhuma “Cidinha”. A coisa estava feia.
E continuou:
“Depois daquele dia nos encontramos aqui, nos vimos novamente e contei que havia me separado da Cidinha e estava com a Célia. Até mostrei uma foto dela!”
E continua.
“Convido você a tomar um capuchino, pois bem sei que gosta muito. Aliás, você sempre toma capuchino com licor de amêndoas. Sim, bom demais”
Tive ímpetos de sair correndo, mas não deu. Foi o pior capuchino com licor de amêndoas que eu tomei.
Continuou falando sem parar. Perguntou pelos meus pais e irmãos (pelo nome de cada um deles). Relembrou das casas onde morei, lembrou até de algumas ex-namoradas minhas.
“Puxa, e a Marlene, era bem bonita...e se me permite muito gostosa...ao menos até onde a vista alcança...AH!AH!AH!AH!” Me desculpe, veja como um elogio”
Quanto a mim só sobrou a oportunidade de exercer minha parca imaginação, com perguntas amplas, vagas e genéricas que davam margem a diferentes resposta. Claro que algumas vezes tive de escutar:
“Mas, Márcio. Você sempre foi muito bom em detalhes. De sua memória não foge nada. Como pode ter esquecido disso, e daquilo...”
E sei lá mais do quê.
Finalmente tive que alegar algo drástico, para poder fugir: ameaça de desinteria. E ele.
“É o seu eterno problema intestinal, não é. Não tem nada, mas quase morre de tanto comer doce. Depois ficava tomando chá de erva cidreira que sua mãe fazia. Lembra? Sua mãe, a dona Diná sempre falava. ‘Não coma muito doce e nem e jejum’. Nunca esqueci. Morreu não é? Foi em dois mil e um. Tadinha”.
Um sorriso amarelo concordando com tudo. Suor escorrendo. Um novo longo abraço, do tipo quebra costela “plá-plá-plá”. E escuto no ouvido direito:
“Telefono um dia desses para recordarmos os bons tempos”.
Virou as costas e perdeu-se no imenso supermercado.
Na semana seguinte, por via das dúvidas, mandei trocar o número do meu telefone.
Nunca soube quem era aquele fantasma...

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Lá atrás já não existe mais

Lá atrás já não existe mais - Márcio Barker

Novamente aí está você. 
Já o vi tantas outras vezes, não é? 
Sim, já vi!!! Já nos encontramos aqui e ali. Não tem jeito, por que será?
Novamente você está no meio de meu caminho. 
Novamente eu me detenho diante de você. 
Nos olhamos.
Eu vejo seus olhos nos meus, você mesmo quieto é pavoroso. 
Você me desafia, como tantas outras vezes já desafiou. 
Você parece se preparar para o bote maior, mortal, definitivo. E eu, novamente tenho que imaginar como enfrentar você.
Olho de um lado. Tudo horrível. Horripilamentemente sem graça, sem cor, sem som, sem cheiro.
Olho de outro. Tudo sem cheiro, sem som, sem graça horripilantemente sem graça. 
É o cinza da indiferença.
É o negro da desesperança que ameaça levar-me com ela.
É o imenso vácuo da mesmice. A mesmice de todas as manhãs.
A mesmice de todo anoitecer.
A mesmice do despertar ao anoitecer.
Se olho para trás...de que adianta? De nada, pois lá atrás já não existe mais. 
Lá atrás é o refúgio da velhice, da covardia, do medo, da imaginação parca e porca.
Dos lados tudo é escuro.
E, lá atrás já não existe mais.
O que sobra? Sobra apenas uma única opção: adiante!!!
Mas adiante está você, com suas garras impiedosas. Já provei dessas suas garras.
Adiante está você que me borrifa fogo, e me queima se dó.
Entre eu e o adiante, está sua força horrível. 
Seu bafo que carboniza. 
Seus olhos que aterrorizam. 
Já nos encontramos antes, não?
Sim eu conheço você perfeitamente.
Já pus minha cara prá você queimar.
Já fui prá cima de você pronto para que me trucide.
Já gritei com você prá cortar-me com suas garras.
É...pois é.
E você me queimou.
Você me trucidou.
Você me cortou.
Mas...
Mesmo queimado eu insisti.
Mesmo trucidado continuei vivo
Mesmo cortado juntei os pedaços.
Dos lados não sobra nada...rigorosamente nada!
E, lá atrás já não mais existe.
Única opção: Ir adiante, com ou sem você no meu caminho.
Tomo fôlego, e olho prá você.
Por que será que hoje me parece maior?
Mais poderoso?
Mais tenebroso?
Mais invencível?
E eu? Como estou para a luta?
Bem, não importa. Devo ir adiante, com ou sem você...
...mesmo que eu não tenha certeza do resultado.
Vamos lá, então...