Na “Estados Unidos” com a “Augusta” - Márcio Barker |
1972. E lá vinha eu não me lembro de onde, para minha casa. Ia indo pela rua “Estados Unidos”, Nisso o semáforo fecha, e, claro, o trânsito para. Era o semáforo que tinha, e ainda tem, com a rua “Augusta”, aqui na minha cidade onde vivo, São Paulo.
Lugar chic...é...sempre foi. Cheio de bacanas engomados, madamas empetecadas e coisas assim. Carrões, boutiques, clubes chics e por aí vai. É bom que se diga que, eu simplesmente apenas passava por lá.
No semáforo eu gostava de ver o movimento...principalmente o feminino (ainda gosto, manifestação de algum sinal de interesse pela vida).
Daí aparece um camarada, jovem, forte, que certamente tinha uma deficiência física numa das pernas. Ele usava uma muleta. Senti muita pena. Na outra mão, uma cesta repleta de doces. Eram balas de gomas desbotadas, paçocas suspeitas, balas de várias cores, tendo como lugar comum o mesmo sabor, pirulitos pálidos, brigadeiros duros (pelo tempo), suspiros esfarelentos,, que estavam mais para “gemidos”, e por aí vai. Nada de muito tentador.
Então, o moço se aproxima do primeiro carrão, e vai oferecendo seus doces. Previsivelmente o motorista educadamente recusa.
Daí o vendedor coloca uma mão no teto do carro e, aos berros, vai dizendo:
“Então. Vejam só esse filha da puta” (perdão, apenas reproduzo o que escutei).
E continua.
“Carrão com pintura metálica, rodas especiais e pneus tala larga. Eu ofereço um puto de um docinho para esse puto desse cara, e ele se recusa a comprar. Não é um filha da.....”? (Vocês sabem de que).
E prossegue.
“Eu fodido na vida, sem trabalho e grana, e o cara todo engomado não me ajuda. Sabe o que mais? VAI TOMAR NO....” (preciso completar?)
Às essas alturas eu já estava abalado. E o vejo partir rumo ao segundo carro da fila ( meu era o quarto)
Ele chega na janela do carro e vai dizendo:
“Vai um docinho, moço?”
E o outro:
“Não, obrigado.”
Daí novo discurso.
“Olha aí!!! Olha aí!!! Mais um! Se não vejamos. Carrão importado, cor especial, teto sola elétricor, motor V8, e com injeção eletrônica. Olha o detalhe. Teto de vinil, freios a disco ( naquele tempo eram o máximo), bancos de couro tipo cromo, fora os cromados nos para choques e frisos. E o desgraçado se recusa a comprar uma paçoquinha sequer, para me ajudar. Seu FILHA-DA-PUTA!”
Detalhe, o semáforo completamente indiferente a tudo, firme no vermelho. Lembro que era primavera, mas senti uma gota de suor.
E lá vem ele, rumo ao terceiro carro (eu era o quarto, lembram?)
Não era possível que ninguém comprasse um doce sequer daquele infeliz.
Bem, daí ele para diante da janela do motorista do terceiro carro. Aliás, uma das preciosidades da época.
E novamente vai dizendo.
“Vai um docinho, moço?”
E o outro:
“Não, obrigado.”
Era demais, e eu vexado.
Daí...
“Escuta, você dorme bem?” Pergunta o rapaz (não ouvi resposta). E prossegue.
“Deve comer muito bem, não é? Tem uma coisa chamada consciência? Porque você não pega essa gravata italiana e enfia no...? (não preciso dizer).
E continuou
“Esse suíço de Geneve aí no seu pulso, está mais ou menos a quanto? E você não quer comprar um docinho, seu desgraçado?
Uma bela gabardine inglesa, lenço de seda italiana, meias importadas...e a cueca, de onde será? E-NÃO-QUER-COMPRAR-UM-DOCINHO? Seu corno!!!”
Lembro que era “seu isso”, “seu aquilo”. E continuou.
“Belo carro, não? Hidramático, direção hidráulica. Tudo isso para que sua excelência o bebê não fazer força. Motor especial que faz de zero a cem em dois segundos...e o meu doce? Seu filha....”
“Filha disso”, “filha daquilo” e “filha daquilo outro” e não sei mais o quê.
E o semáforo? Ora, firme no vermelho.
Enquanto ele vociferava, eu comecei a conjecturar as saídas que poderia apelar. Talvez a melhor delas fosse pela porta do lado direito do meu carro.
Palpitação, respiração forte...
Nisso, o ruído estridente de borracha de pneus queimando no asfalto. O cretino do farol resolveu dar o ar da graça: estava verde.
Os meus pneus também saíram queimando e cantando no asfalto. O alívio foi indescritível
E, sabem, até hoje uma dúvida cruel me assola, e nem sei bem a razão: Teria, ou não teria comprado os doces daquele sujeito?
Você compraria...por medo, ou compaixão????????
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