segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Naquele quintal, um Universo

                 Naquele quintal, um Universo.
Márcio Barker


Outro dia encontrei esse quintal aí.
Nossa! Que quintal tão bonito! Igualzinho a tantos quintais que vi,  no meu tempo de menino.
Eu ainda lembro daqueles quintais. Cheio de árvores, plantas, flores, muita cor, e simplicidade. Ah, sim. Era  isso, a simplicidade, o toque daqueles quintais.
E, nesse quintal aí, vi coisas que só vi, nos quintais de minha infância.
Olha, só, até tem beija-flor.  Puxa vida!  A quanto tempo não via um deles.  Verdadeiro às, flutuando no ar, e metendo o bico nas flores. Sabem, confesso, sempre quis experimentar uma das flores que o beija-flor se regalava. Mas, meu bico era maior...
Vejam, uma amoreira!!! Que coisa! Eu sempre imaginava que amoras davam em cachos. Mas não. Dão no tronco e galhos. Tinha esquecido.
E, nesse mesmo quintal, encontrei outro personagem mágico: a Colombina. Quem é a Colombina? Imaginem, uma jaboti!!!  Conheci outros jabotis, mas nunca pensei que iria encontrar um, com o nome de Colombina.  Aliás, já fui íntimos de jabotis, tive vários. Quando menino, sabia de seus gostos, até assuntos preferidos.  E sabem? A Colombina gostou de mim. Ficou andando atrás de mim. Me agachei, e cocei sua  cabeça.Ah, senti todo importante!!! Não era para menos. Quando criança me contaram que  é uma deferência dos jabotis fazerem isso. E não é qualquer um que deixam coçar a cabeça, Viu, só? Coisa para poucos.  Conversamos, eu e a Colombina. Olha que ela tinha histórias, afinal, são seres longevos.  Me falou de suas intermináveis caminhadas, dos papos com o gato do vizinho, dos cantos onde se mete, para um cochilo. Grato, eu servia a ela um pouco de mamão e banana, enquanto papeávamos. E lá veio mais histórias.
Continuei caminhando por esse quintal aí, nele também tinham seres incríveis. Sim, lembro-me de contos extraordinários, de fantasmas fantásticos, como aquele, da   mula sem cabeça, que punha fogo pelos olhos. Incrível! E, juro a vocês, que a vi,  sim,  toda elegante, imponente, cavalgando pelos quintais de minha infância. Verdade, viu? Vi mesmo.

Daí, de repente, eu escuto ele se aproximando.  Sim!!! É ele mesmo, como o via num de meus velhos quintais!!! Em meio ao bosque, ele vinha surgindo com seu imenso farol, amarelo, jogando para os lados, as sombras das árvores. Era o meu trem, que passava no fundo do quintal, toda tarde. Resfolegando, cuspindo fogo, nem por isso o achava deselegante. Era  outro ser incrível  em sua força, que eu admirava tanto, e tanto o achava lindo. Espalhava um doce perfume, que nunca esqueci: o cheiro do carvão queimado.
Naquele quintal, também encontrei pessoas especiais. Sim, pois quem habita quintais como esses, não pode ser deste mundo. Delas escutei histórias maravilhosas, mágicas, de como a vida pode ser alegre e simples. De como a simplicidade pode ser tão rebuscada. Histórias que sobreviveram ao tempo, e a minha dita maturidade.
E, neste quintal aí, eu caminhei por entre as árvores, cruzando com borboletas, que já não via mais, mas queria acreditar que ainda existiam. Olhava para o céu, vendo infinitas estrelas, e lembro que entre as árvores, lá estavam os vagalumes. Na lembrança, suas lanternas eram verdes, azuis, amarelas e até vermelhas. Um deles pousou na minha mão. Embasbacado, vi como ele acendia e apagava sua luz. Como fará?  Não importa, deve ser uma mágica.
E, neste quintal aí, encontrei tudo isso...coisas de minha infância.
Estou sinceramente feliz, por ter encontrado esse quintal. Nele, um universo...e tanta coisa mais, que me surpreendeu...

Depois conto para vocês.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

A Carta


A Carta

 Marcio Barker

Hoje amanheci com vontade de escrever uma carta.
É, sim. Uma carta numa folha de papel pautado e com uma caneta tinteiro.
Pois é, eu hoje acordei com vontade de escrever uma carta.
Sim, apesar de meus garranchos, feios e desproporcionais,  mas com eles, eu quero escrever.
Imagine, querer escrever uma carta, hoje, com tanta tecnologia. E querer escrever, e com uma caneta tinteiro, numa folha de papel ao maço.
É, essa  tecnologia, que no dia-a-dia abrevia, torna objetiva e encurta qualquer escrita.
E, não apenas  o tamanho da escrita, mas abrevia também as ideias.
A carta que quero escrever, é uma carta como eu escrevia, há tanto tempo!!!
Aliás, não era bem escrever. Era desenhar as letras, ora feias, ora mais ou menos, mas, na média, garranchos como eu disse.
Mas havia que as lesse e, incrível, as entendesse.
Era a magia da carta. Demorada para se escrever. Demorada para ser enviada. Demorada para chegar. Demorada para ser lida. Deliciosamente demorada para ser lida...como foi, quando escrita.
Uma magia que parece não ter mais lugar.
A carta tinha ideias, pensamentos que se estendiam, letra  após letra, linha pós linha, folha pós folha.
Na carta era permitido, e perdoado erros de escrita,  que, quando corrigidos,  viravam semi-borrões.
Ah, sim, e na carta, se quisesse podia mandar uma flor. Detalhe, flor de verdade.
Na carta, se quisesse, poderia mandar um perfume. Hoje já não dá. E flor, só aquelas já programadas para se colocar. Flores de mentirinha.
Na carta, eu poderia beijar a folha de papel, e colocar um “x” onde estava o beijo. E, quando chegasse, a destinatária, beijava o mesmo “x”. Legal, não?
Na carta que quero escrever, o desenho das letras mostra o que vai pelo meu coração. Não sei se digitando, isso é possível.
Mas, no fundo, eu quero escrever uma carta, coisa antiga. Sim, e quero escrever à moda antiga. Para,  à moda antiga, dizer que estou gostando de você.
Será que valerão à pena os meus garranchos, borrões e a demora em chegar?
Depois, você me conta, tá bom?

Beijo.

Imagem depositphotos

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O ANJO

                                              O Anjo

                                                                  Marcio  Barker

                                                    


E lá ia eu, lépido e todo à vontade, atravessando uma movimentada avenida.
Nisso passa por mim, um estupendo par de glúteos!!! 
Faço até uma perentesis. Não nego, é o meu fraco. Olho mesmo, disfarçadamente para não haver constrangimentos, mas olhos, sim!!! Confesso, sem arrependimentos.
Bem, mas como dizia, fantástico par de glúteos, feminino, daqueles de tirar o chapéu, dar taquicardia, falta de ar e até, aflição.  Sim! Já estou ficando velho, mas não perco a mania (FELIZMENTE)
Nisso, um xingatório, buzinas, ruído de forte freada, cheiro de pneu queimado. E escuto:
"Ô imbecil! Acorda! Não vê por onde passa???"
Resumindo, quase fui atropelado, por causa daquele fantástico, único, maravilho, ímpar, par de glúteos. Mas teria sido por uma boa causa.
Chego a calçada. Vejo um camarada meio descabelado, suando, com o rosto transtornado  pela  braveza.
Com o dedo em riste, vai dizendo:
"Escute, você já passou da idade. Já não tem mais cinco anos para atravessar uma  avenida dessas, e nem tem mais vinte e poucos anos para ficar vidrado por uma bunda, não acha?"
Resposta óbvia. Se achasse, não teria olhado aquele monumento, fantástico, maravilhoso, adorável, incrível...
"Basta! Chega! Escute aqui, até quando você vai ser assim? Não se emenda, não toma jeito, não cresce?"
Puxa vida, pensei. Isso tudo é lugar comum. Prá mim não é novidade. Ouvi exatamente essas mesmas coisas, desde que tomei consciência. Por que será que todos repetem a mesma ladainha?
E o cara continuou falando um monte, para mim.
Eu nunca tinha visto, era um tipo comum, mas o que me chamou a atenção, foi um curioso par de asas, que tinha nas costas.
Estávamos na época de carnaval? Seria um maluco?
Fui saindo de lado, mas o cara continuou colado comigo.
Parei.
E fui perguntando: "Escute, qual é o seu problema?"
"Você". Respondeu de pronto.
"E o que você tem com a minha vida?"
"Infelizmente, tudo!"
"Mesmo?  Nunca o vi! Por que não vai cuidar da sua vida?"
Ele riu, sentou-se no chão, e gargalhou. E foi dizendo:
"Ora, seu eu pudesse, teria feito isso há tempos"
E, com um ar de desânimo, continuou.
"Mas não posso. Fui escalado, lá no alto, para zelar, proteger, acompanhar, indicar, iluminar, e sei lá mais o quê, você mesmo."
E continuou.
"Quando você nasceu, e me disseram que esse seria o meu papel, não imaginei o quão duro, difícil, enrolado, trabalhoso, cansativo, sofrido, chata, etc & tal, seria a minha missão. Já são décadas ao seu lado, e você continua admiravelmente o mesmo. Que me perdoem, mas cacete, por que não muda um pouquinho? Afinal, os anos se passaram."
Mas que história é essa? Quem será ele?
Ah, e continuou.
"Quando criança subia em muros,  e quase caiu umas duzentas vezes.  E eu, só segundando você, a milímetros do chão. Isso sem falar das caneladas que dava nos outros. De quantos castigos eu livrei você!  Ah, sim, se metia debaixo da mesa prá ficar olhando as pernas da mulherada, e eu derrubando coisas, prá distrair o pessoal, para não verem o que o taradinho fazia. Roubava doces da avó, também em casa dos outros, jogava pimenta na comida alheia, vivia caindo da bicicleta por se exibir, atravessava a rua sem olhar. Enquanto isso, eu só dando nó em pingo d'água, para evitar o pior. Quando cresceu, comia só porcarias. Pipoca, doces (de abóbora, de leite, de cidra, de figo), toneladas de balas, fritura de monte, toneladas de ovos (sem falar os de Páscoa). E eu, pobre de mim, segurando a sua barra. Lembra?"
Sim, verdade. E eu ainda dizia que queria ter um estômago forte, figado heroico, rins maravilhosos, e um fiofó de aço, prá aguentar o repuxo. 
E ele prossegue:
"Depois cresceu, envelheceu, e continua  o mesmo: 'Pé de chubo' na direção. Nunca bateu. Transava sem camisinha com as namoradas. Nunca engravidou nenhuma. Safado, sem vergonha, e todo mundo achava simpático. E, prá completar, velho,  um fã incondicional de bundas!!! Não acredito. Eu vou me demitir!"
Virei para ele, e disse.
"Se você é quem estou pensando, não sabe o quanto sou grato. Mas não se demita, por dois motivos. Primeiro, não vou durar cinco minutos nesse mundo. Segundo, você vai morrer de tédio. Pense bem."
Fez uma cara de conformado, deu de ombros, e sumiu.  
Acho que topou a sugestão. Ainda continuo por aqui, ó.

Imagem: Cantigueiro