O Anjo
Marcio Barker
E lá ia eu, lépido e todo à vontade, atravessando uma movimentada avenida.
Nisso passa por mim, um estupendo par de glúteos!!!
Faço até uma perentesis. Não nego, é o meu fraco. Olho mesmo, disfarçadamente para não haver constrangimentos, mas olhos, sim!!! Confesso, sem arrependimentos.
Bem, mas como dizia, fantástico par de glúteos, feminino, daqueles de tirar o chapéu, dar taquicardia, falta de ar e até, aflição. Sim! Já estou ficando velho, mas não perco a mania (FELIZMENTE)
Nisso, um xingatório, buzinas, ruído de forte freada, cheiro de pneu queimado. E escuto:
"Ô imbecil! Acorda! Não vê por onde passa???"
Resumindo, quase fui atropelado, por causa daquele fantástico, único, maravilho, ímpar, par de glúteos. Mas teria sido por uma boa causa.
Chego a calçada. Vejo um camarada meio descabelado, suando, com o rosto transtornado pela braveza.
Com o dedo em riste, vai dizendo:
"Escute, você já passou da idade. Já não tem mais cinco anos para atravessar uma avenida dessas, e nem tem mais vinte e poucos anos para ficar vidrado por uma bunda, não acha?"
Resposta óbvia. Se achasse, não teria olhado aquele monumento, fantástico, maravilhoso, adorável, incrível...
"Basta! Chega! Escute aqui, até quando você vai ser assim? Não se emenda, não toma jeito, não cresce?"
Puxa vida, pensei. Isso tudo é lugar comum. Prá mim não é novidade. Ouvi exatamente essas mesmas coisas, desde que tomei consciência. Por que será que todos repetem a mesma ladainha?
E o cara continuou falando um monte, para mim.
Eu nunca tinha visto, era um tipo comum, mas o que me chamou a atenção, foi um curioso par de asas, que tinha nas costas.
Estávamos na época de carnaval? Seria um maluco?
Fui saindo de lado, mas o cara continuou colado comigo.
Parei.
E fui perguntando: "Escute, qual é o seu problema?"
"Você". Respondeu de pronto.
"E o que você tem com a minha vida?"
"Infelizmente, tudo!"
"Mesmo? Nunca o vi! Por que não vai cuidar da sua vida?"
Ele riu, sentou-se no chão, e gargalhou. E foi dizendo:
"Ora, seu eu pudesse, teria feito isso há tempos"
E, com um ar de desânimo, continuou.
"Mas não posso. Fui escalado, lá no alto, para zelar, proteger, acompanhar, indicar, iluminar, e sei lá mais o quê, você mesmo."
E continuou.
"Quando você nasceu, e me disseram que esse seria o meu papel, não imaginei o quão duro, difícil, enrolado, trabalhoso, cansativo, sofrido, chata, etc & tal, seria a minha missão. Já são décadas ao seu lado, e você continua admiravelmente o mesmo. Que me perdoem, mas cacete, por que não muda um pouquinho? Afinal, os anos se passaram."
Mas que história é essa? Quem será ele?
Ah, e continuou.
"Quando criança subia em muros, e quase caiu umas duzentas vezes. E eu, só segundando você, a milímetros do chão. Isso sem falar das caneladas que dava nos outros. De quantos castigos eu livrei você! Ah, sim, se metia debaixo da mesa prá ficar olhando as pernas da mulherada, e eu derrubando coisas, prá distrair o pessoal, para não verem o que o taradinho fazia. Roubava doces da avó, também em casa dos outros, jogava pimenta na comida alheia, vivia caindo da bicicleta por se exibir, atravessava a rua sem olhar. Enquanto isso, eu só dando nó em pingo d'água, para evitar o pior. Quando cresceu, comia só porcarias. Pipoca, doces (de abóbora, de leite, de cidra, de figo), toneladas de balas, fritura de monte, toneladas de ovos (sem falar os de Páscoa). E eu, pobre de mim, segurando a sua barra. Lembra?"
Sim, verdade. E eu ainda dizia que queria ter um estômago forte, figado heroico, rins maravilhosos, e um fiofó de aço, prá aguentar o repuxo.
E ele prossegue:
"Depois cresceu, envelheceu, e continua o mesmo: 'Pé de chubo' na direção. Nunca bateu. Transava sem camisinha com as namoradas. Nunca engravidou nenhuma. Safado, sem vergonha, e todo mundo achava simpático. E, prá completar, velho, um fã incondicional de bundas!!! Não acredito. Eu vou me demitir!"
Virei para ele, e disse.
"Se você é quem estou pensando, não sabe o quanto sou grato. Mas não se demita, por dois motivos. Primeiro, não vou durar cinco minutos nesse mundo. Segundo, você vai morrer de tédio. Pense bem."
Fez uma cara de conformado, deu de ombros, e sumiu.
Acho que topou a sugestão. Ainda continuo por aqui, ó.
Imagem: Cantigueiro
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