quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Amigos do Exilio

  Amigos do ExilioMárcio Barker       

                                                                                                                       
                                                      
Às vezes, à tarde, costumo sentar aí. (Olhem a foto). Dá para ver um pedaço do céu. Fico imaginando lugares que estão muito longe de mim, por onde já passei, e mesmo aqueles onde nunca estive, mas teimo em sonhar que passarei um dia...sei lá quando.
Longo, não demora esses três camaradas se juntam a mim. O cachorro é o Buffon, irrequieto e metido

a (meio) pastor, (meio) alemão. Ao seu lado, o cinzento Thomas, com seu jeito de camarada afável, e o grande Charles, amigo branco, mas sempre mal humorado.
E, nos quase quatro anos de desemprego, sobrevivendo graças à esmola da aposentadoria, passo semanas como um frei, num convento. Mas não por escolha, mas por imposição do meu depauperado e surrado bolso. Os dias são “replays” uns dos outros, e a grande arte é a de não se deixar enlouquecer, e procurar saídas. Se eu nasci, se estou vivo, ora, ora, tenho que aproveitar minha vida, não é? Já que estou por aqui, apesar de não imaginar por qual razão. Mas isso é mero detalhe.
Sim, e seria demais falar da raiva de ver minha vida indo para o ralo, dia-a-dia, escorrendo por entre os dedos inúteis em impedir isso (“bela” imagem “poética” rsss).
Longe das cores do mundo, longe de seus infinitos caminhos, enquanto ele borbulha freneticamente, cá estou eu. E, mesmo que me sentido jovem, sei bem que não tenho lá mais muito tempo. Pois é, ele, o tempo, se esgota rápido por entre meus dedos. E eu, triste idiota, não sei o que fazer para impedir. Como sou incompetente!!!
“Burro!!!” Sim, com três exclamações. E quem sentencia isso sou eu mesmo. Sempre imaginei que, 99% do que acontece com cada um, é responsabilidade, de cada um. Então: “B-U-R-R-O” outra vez. Uma vez um médico comentou comigo: ”Nós pagamos na velhice, os excessos que cometemos na juventude”. E amargo eu acrescento: inclusive os tolos sonhos juvenis nos cobram um pesado tributo na velhice.. Mas “fazê” o que, né?

Entre um sonho e outro, uma tentativa e outra, uma teimosia a mais, eu paro um pouco, sento ali, na escada, e olho o céu. É legal. E logo meus amigos se aproximam de mim. E, nesses anos de vagabundagem explícita, num exílio forçado, comecei a descobrir o universo que está muito perto de mim, por trás daqueles olhos caninos e felinos.
O que dirão eles? Fico imaginando se eles falassem português, ou eu entendesse o “minhês” ou o “auauês”. Como seriam nossas conversas, nas tardes perdidas ao pé da escada, ao pé da noite?
Serenos, calmos, absolutamente tranqüilos, essa dupla de e charmosos gatos me parece sábia. Que universo há por de trás daqueles bigodes? Os gestos lentos e elegantes, seus olhos amarelos e os rostos enigmáticos dizem muito. Mas não dá para traduzir em palavras. Sim, pois muitas vezes elas são limitadíssimas. Entretanto, nesses gatos, deve existir algo que me faz crer, sim, absolutamente crer, que eles são sábios. E como tal, me fazem bem. E nesses momentos, até o irrequieto Buffon, igualmente se tranqüiliza, e me olha com profundo carinho, com seus olhos castanhos escuros. Em silêncio, eles dão voltas ao meu redor, me tocam com as patas pedindo atenção (ou consolando-me, vai saber), e me voltam a olhar. E, muitas vezes deixo a curiosidade de lado, e simplesmente fico como eles...e com eles. Quem sabe o universo desses três “bichinhos”, como ingenuamente os chamamos, me puxe um pouquinho para “o lado de lá”.
E é seguramente, quando nas solitárias tardes, naquele pé de escada, já quase ao pé da noite, que eu me sinto tranqüilo. Extrato de banco? Nunca ouvi falar nisso. O inferno paulistano? Não sei onde é. O problema a ser resolvido? Que problema? Existe isso? Sei lá. Comprar? Mas comprar o quê, prá quê e por quê? Não faço a mínima idéia. Preocupação? Mas com o quê, por quê e prá quê? Preocupação? Não sei mais o que é isso.
É o outro lado da moeda, nesses anos de exílio, anos tortuosos, em que luto para não sonhar com o passado, para livrar-me desse presente e adivinhar um incerto futuro...com os pés no chão.
E, enquanto estou longe de meus iguais, os humanos, esses três camaradas freiam não sei de que modo, as minhas angústias. É possível que saibam igualmente a fazer magias...ou será que, por serem sábios, se confundem com mágicos? Uma sapiência que um reles ser racional não alcança.
A vocês o meu mais profundo agradecimento. Não sabia o quanto são geniais, meus amigos e senhores de muitos mistérios...que eu nem imagino como um pretensioso ser humano...

Velhos Amigos Velhos



Velhos Amigos Velhos - Márcio Barker


Caminhado pelas ruas, a incerteza.  Qual? A da próxima refeição. A dor do abandono, o sentimento da injustiça de ser rejeitado, a saudades de um prato de comida, da água fresca, da amizade. O ódio de ser enjeitado, de ter dado amizade a quem não merecia. De ter jogado tanta coisa boa fora, como pérolas aos porcos.
Agora vagando por aí. Destino? Nenhum. Resta sentar um pouco numa calçada, e esperar sabe lá o quê. Algo que o tire da solidão, da fome, da sede, de tamanha triste sem fim.
Perderam casa, amizades (que eram falsas), um canto para dormir em paz, perderam a vontade de rir, de brincar, perderam o endereço. Perderam até o nome.
Coitados. Olho para eles e pergunto de onde vieram, como eram chamados, o que comiam e quem foi o desgraçado que fez, o que fez, com eles.
Mas eu entendo quando eles fazem questão de não comentar nada sobre o assunto. Afinal devem sentir-se profundamente decepcionados. Discretos me olham, mas nada dizem. Eu entendo o seu silêncio
Encontrei os dois por aí, ao acaso, lutando, não pelo amanhã, mas pelo minuto seguinte. Sujos, chutados, com muitas cicatrizes pelo corpo. E a pior delas, a que fica na alma. Olharam-me desconfiados, chateados. Seria eu mais um? Possivelmente perguntaram se eu era confiável. Tinham razão para tamanha desconfiança. Eu era parecido com os sacanas que os haviam empurrado ao mundo incerto, de horizontes cinza, apesar dos anos de amizade.
Os dois olharam para mim, em tempos diferentes. No olhar triste do abandono, e do estômago que berrava, pareciam dizer que, “errar é humano, porém perdoar é canino”. Grande verdade, que eu nunca havia pensado.
Convidei-os a entrar. Hesitaram Lançaram-me um olhar de canto, de desconfiança.  Mas em suas incríveis percepções, devem ter visto um anjo diante deles. Não aquele anjo com asas, que só promove o bem, que está acima de qualquer crítica e suspeita, que é bonzinho bonitinho e que nos ajuda. Não. Um anjo terráqueo, como tantos que andam por aí, e que são o contraponto dos falsos amigos.
Então, felizes, e de bom grato, ofereceram-me suas amizades. Viram que o camarada que os convidou para entrar era confiável… porque era  também, muito parecido com eles.
P.S.: Uma homenagem pela amizade e companhia, ao Bono e ao Boris, meus amigos cães, que eu achei na rua, e que peguei para mim

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Ode ao batedor de carteiras

Ode ao batedor de carteiras - Márcio Barker

“Eu fui à Lapa e perdi a viagem/ que aquela tal malandragem/ não existe mais/Agora já não é normal/O que dá de malandro regular, profissional/malandro com aparato de malandro oficial/malandro candidato a malandro federal/malandro com retrato na coluna social…”
(Fragmento de  “Homenagem ao Malandro” – Chico Buarque de Hollanda)

Mas nem sempre foi assim. Não, não senhor. E como bem diz essa  composição de Chico Buarque de Hollanda, o malandro de ontem era bem outro.
Um deles era aquele ser lendário, motivo até de inveja, admiração e até, pese as circunstâncias, merecedor de respeito.  Era aquele camarada que deslizava pelos bondes e ônibus, que circulavam nas antigas metrópoles brasileiras.
Apesar de não ser, tornava-se invisível. Era o concreto transformado em no abstrato. Uma mistura de gato  e sombra, quem sabe até um peixe ensaboado. Fazia do silêncio uma arte. Arte também era a capacidade de se tornar imperceptível, de não ser notado apesar de estar presente.  E, em meio à super população dos bondes e ônibus de outros tempos, ele era também a ave de rapina. Sim, um autêntico predador implacável… sem se fazer notar…camuflado.
Os antigos ônibus e bondes…ha, sim, trens também, tinha esquecido. Era seu território, seu pasto,  onde conseguia subsídios para a dura sobrevivência, no implacável dia-a-dia. Era ele sua excelência  o batedor de carteiras.
Um gênio na arte da dissimulação. Um artista da pantomima. Em meio a gestos delicados, finos, disfarçados, com mãos precisas, porém de seda e com dedos de veludo,   ele deslizava soberbo, onipresente, porém e imperceptível por entre bolsas, bolsos, paletós, vestidos e até coletes, em busca de sua sobrevivência: ela, a carteira. Sim,  recheada, ou mais minguada, tanto faz, pois cavalo dado não se olha os dentes.
E, convenhamos, num tempo sem celular, quando o cheque não era tão popular e cartões de crédito e débito nem sonho eram, ao batedor de carteira não se podiam imputar grandes crimes.  “Crimezinhos”, talvez, porém, sem traumas, sustos, sem grandes efeitos colaterais,  e realizado numa elegância de nunca mais.
A ele, a nossa quase homenagem.

Uma Sabiá

Uma Sabiá - Márcio Barker


Quando eu era pequeno, via minha mãe e tias  ouvindo canções e sambas-canção. Era a mais pura tragédia. Histórias de amor, desamor, ciúmes, passionalidade, ódio, desejo de vingança. No meio daquelas hecatombes amorosas, a figura de um demônio frio, calculista, desumano, animalescos, impiedoso: a mulher. Sim, era ela a responsável por toda a infelicidade dos pobres coraçõezinhos “ingênuos”, “crédulos” e “bonzinhos” do macho.
Gente como os compositores Adelino Moreira e Lupicínio Rodrigues, foram os campeões das tragédias amorosas, em forma de samba-canção.
Mas por que toda essa história? Bem, ela me lembra mais uma, das muitas histórias dos doces tempos juvenis.
Inicio dos anos sessenta. Lá ia o Alceu (naquele tempo “Alceuzinho”). Naquele tempo ele caminhava mais “de largo” do que “de alto”. Gordíssimo, suas calças “Lee” desgastavam no entre – coxas.
Mas logo veio a puberdade e com ela,  pouco de maturidade além, é claro, do interesse pelas mulheres. Daí resolveu “fechar a boca”, tomar uns banhos turcos, e emagreceu.  Até que ficou bem, dentro do possível.
Nos últimos anos daquela década, via-se um Alceu com uma silueta bem diferente.
Rico,  não demorou a ganhar um fusca novo em folha, do velho e bom pai que o paparicava. Mas logo, logo viria o principal: ele foi presenteado com um luxuoso “Galaxie” dourado.
Daí caiu na vida. Paquera na “Augusta”, noitadas no “Ton-ton”, sempre regadas a cokteils de frutas, mulherada, enfim, um playboy. Suas roupas lembravam a de um toureiro. Sempre justas e coloridas. O vinco da calça, perfeito de chamar a tenção. Para completar,  cinturão, cabeleira impecável etc e tal.
Numa dessas saídas,  Alceu encontra a sereia. Sim, daquelas que hipnotizam, dominam, e que fazem um homem ficar abobado. Daquelas mulheres que fazem valer o célebre ditado: “Um pêlo  pubiano feminino move navios”.
Alceu foi envolvido e dominado qual vítima de serpente peçonhenta. Uma serpente que domina sua vítima com os olhos.
Sei lá porque, ele apelidou a garota de “Sabiá”. Daí por diante  tudo era a “Sabiá”.
Um dia o encontrei. Tinha um olhar severo, e falava na tal “Sabiá” com tanta seriedade, que brincando perguntei se iriam comprar alianças. Seriíssimo, respondeu:
“Estamos pensando nisso”.
Fiquei abalado. Vi que a coisa estava feia. Pobre rapaz.
O cara sumiu. Eram olhos só para a “Sabiá”. “Sabiá” prá cá, “Sabiá prá lá”, noitadas no “Tonton”, cokteis de frutas, dá-lhe Galaxie, noites a fio de sexo incrível e inédito, etc e tal.
Nunca me esqueço de quando ele apareceu dizendo que “tinha dado onze” com a “Sabiá”.  Com um detalhe: numa única noite! Fiquei pensando no panteão dos  heróis,  deuses e semi-deuses  da Grécia  e Roma antigas. Ali estava Zeus segurando raios com a mão direita. Também Baco, com cachos de uva na cabeça e,  na mão direita,  uma taça de vinho. Ao lado, Netuno empunha o seu tridente. E, logo depois, lá está o Alceu em sua formosura, tendo na mão direita o seu vigoroso e ímpar penis.
As semanas se passaram, e  o grande amigo Alceu, envolvido em seu romance sem precedentes…deixou de lado até as amizades  mais fiéis.
Não demoraria o desfecho do romance, aliás previsível, menos para o desatento Alceuzinho.
Foi quem sabe um domingo, não me lembro bem. A “Sabiá” disse que “teria” um compromisso. Não poderia sair. Naquela noite, Alceu sai em seu Galaxie dourado, acompanhado de um  amigo, o Eduardo.
Não sei bem se foi na “Augusta”, ou nas proximidades.  Leve,  Alceu aprecia o ambiente festivo e colorido, com o espírito “lavado” por mais um sexo homérico, no dia anterior.
O tráfego para. É nesse momento que a tragédia se desenha em rápidos e tenebrosos traços. Ali, bem ao alcance de seus olhos, no meio-fio, um carro, aliás importado, não sei se BMW ou Mercedes, quem sabe um Porche. Dentro dele, a silueta da “Sabiá” completamente envolta nos braços de um musculoso “Romeu”. Dava para ver a saliva escorrendo. Sem dúvida, o beijo devia ser de língua. O pobre Alceu petrificou… nenhum movimento, olhos estalados. Ao lado o Eduardo arrisca:
“Quem sabe um primo. Um conhecido…” Mas nem ele mesmo acreditou no que disse.
Hecatombe!!! Ferido de morte, Alceu entrega o volante ao amigo.
Dias depois encontro a turma. Ali, meio de lado, estava o Alceu.
Olhar abobado, perdido, rosto chupado, cinza, despenteado, barba por fazer e aparvalhado. Boca entreaberta.  Fiquei preocupado. Seriam vermes?
Chamaram-me de lado, e contaram a meia boca o sucedido. Sabendo como eu sou logo fizeram uma recomendação:
“Não tira sarro porque o cara ta mal! Mas mal mesmo!!!”
Mais uma vez se confirmava o velho e antigo ditado que diz assim:
“Meu amigo, você que é metido a comedor e ingênuo, cuidado, pois um dia poderás levar sabe onde?”
Melhor não dizer.